O diálogo entre pais e filhos
domingo, 28 de novembro de 2010 by Reciclagem de Artigos in


Recentemente tive a oportunidade de participar de um programa da TV UPF, que tinha como tema a questão do diálogo e da confiança entre pais e filhos, e a redução da maioridade penal. O programa foi articulado em torno da morte dos adolescentes Liana e Felipe, um casal de namorados assassinados, em São Paulo, por um outro adolescente. Quero transmitir um pouco do que fiquei pensando a partir destes temas, especificamente sobre diálogo e confiança entre os adolescentes e seus pais. A questão da maioridade penal é outro assunto polêmico, que deixo para outra oportunidade.

A mídia tem abordado o fato dos adolescentes mortos terem mentido para seus pais sobre o seu paradeiro naquele trágico final de semana. Abre-se, deste modo, um questionamento que busca entender por que os jovens na sua maioria mentem para seus pais, por que a relação entre pais e filhos é tão conflituada, especialmente no período da adolescência, marcado por discussões e brigas que podem ter todo o tipo de conseqüências. Os jovens cheios de dúvidas, angústias e medos e os pais... os pais também.

Contudo, essa história de conflitos e de situações enigmáticas inicia-se muito antes do tempo da adolescência. Vamos voltar atrás e pensar nessa relação dos pais com seus filhos desde seu início, sempre levando em conta que todos os sujeitos são singulares, cada um é único, assim como as relações que se estabelecem entre eles. Freud já nos falava que o psiquismo é estruturado a partir de um modelo vinculador, ou seja, a presença do outro é constituinte para o ser humano. O homem vem ao mundo sem saber quem é ou para que está aí, os pais que o recebem, estes sim se apóiam em um saber. É o vínculo com um outro semelhante que permite que o bebê conheça o mundo e a si mesmo. Assim a vida se constitui a partir de um fenômeno de busca, de encontro, de comunicação, de trocas, de perguntas e respostas. Uma necessidade que perdura vida afora.
Na adolescência, constatamos que existe um reviver de antigos conflitos infantis, um reencontro com desejos, que temporariamente haviam sido relegados a um segundo plano, num período que chamamos de latência, e que permite aos pequenos, lá pelo sexto ano de vida, uma tranqüilidade temporária para que haja espaço para o intelecto, para os números e as letras. Este tempo de calmaria dura até o início da puberdade, onde o que vemos é uma verdadeira metamorfose física acompanhada de profundas implicações psíquicas. O amadurecimento físico proporciona ao sujeito a possibilidade efetiva de concretizar sua sexualidade, o que exige dele um re-ordenamento de toda a sua vida psíquica.
É nesta fase da vida que revivemos nosso complexo de Édipo, que se caracteriza por desejos amorosos e hostis que a criança dirige à seus pais. O auge do complexo de Édipo, segundo Freud, é vivido entre os três e os cinco anos de idade, e passa por período de declínio durante a latência, voltando com força total na puberdade. A todo o ser humano é imposta a tarefa de dominar o complexo de Édipo, o que exige malabarismos do psiquismo e cujos resultados desempenham um papel fundamental na estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano.
No começo da puberdade há um reinvestimento de desejos e interesses nos objetos de amor da sua primeira infância: os pais. Toda a luta do aparelho psíquico será para poder transformar esta escolha dos pais como objetos de amor (a menina que escolhe ao pai e o menino que escolhe a mãe), numa escolha que esteja em conformidade com o que pode ser aceito, ou seja, substitutos para esses primeiros objetos amorosos. A escolha de um objeto livre e desimpedido só é possível se na infância houve o interdito, onde o pai e a mãe puderam se recusar a esse lugar de objeto amoroso do filho, e mostraram que o lugar junto a eles já era ocupado por um outro, seu pai ou sua mãe, e que o pequeno tinha um lugar que era o seu lugar de filho de ambos. Neste processo a criança se identifica com alguns aspectos de seus pais, a mãe no caso da menina e o pai no caso do menino. Busca com isto ter para si características que dão valor aos pais, podendo desta forma ter ela própria o seu valor.
Tudo isto não acontece da noite para o dia, exige muito trabalho psíquico para dar conta dos excessos que adentram o aparelho psíquico da criança. Na puberdade tudo é aceso novamente, com uma grande diferença: todos esses desejos edipianos – é importante salientar que eles são sempre inconscientes - fazem parte de um sujeito que agora possui um corpo que biologicamente estará maduro para a sexualidade genital. Por isso neste tempo, tanto quanto na infância o interdito dos pais se faz necessário, a autoridade do pai e da mãe cumpre uma importante função ordenante neste psiquismo inundado por sensações físicas e por desejos agora possíveis de serem realizados.

A partir disto tentemos compreender um pouco dos movimentos "desobedientes", "desafiadores", "contestadores" dos jovens que questionam ativamente a autoridade e a ordem estabelecida até então. É, em muitos casos, uma busca à autolegitimação como autoridade. Comportamento que até certa medida tem um caráter estruturante, pois trata-se de um desejo de existir, de descobrir-se como pessoa, de constituir-se diferente dos pais. Uma tentativa de existir sozinho para poder fazer escolhas que mantenham a desejada distância dos pais, porque a proximidade pode ser angustiante, ainda mais naqueles casos em que os pais apresentam dificuldade para legitimar o seu lugar de autoridade e de interditores do desejo desenfreado que pode tomar conta do jovem adolescente.
Desejo de poder tudo, de ser indestrutível e imbatível, de viver tudo ao mesmo tempo, ainda que isto lhe ponha frente a riscos, comportamentos que dão conta de uma atitude competidora com os pais, fruto de um desejo de triunfo e de superação, que é ao mesmo tempo um pedido de contenção e uma ânsia por lugares bem definidos, onde os pais representam a ordem, a lei, que precisa vir de fora para que eles possam, por identificação, internalizá-las. De um lado, a negativa de toda a dependência; de outro, a falta da segurança e do conforto da infância.
Por parte dos pais existe o infantil/adolescente da sua própria história que é revivido ao acompanhar os filhos neste processo de desenvolvimento. Os pais frente a frente com sua própria história tem trabalho dobrado: dar conta do filho e de si, dos conflitos e desejos que também o habitam. Por vezes é neste momento que os pais abandonam seus lugares e deixam os filhos entregues a conflitos que sozinhos não podem dar conta. Um pai e uma mãe sempre sabem quando algo não vai bem com seus filhos. É esta verdade que precisa ser descoberta, que deve aparecer. O diálogo é o encontro com a verdade, ainda que ela seja trabalhosa e difícil, mas esse é o caminho para que o jovem sinta-se seguro, para que confie porque acredita que ali está alguém que pode dar conta dele, da sua brabeza, da raiva, das batidas de porta seguidas do som no último volume.Ao longo da vida dos filhos, os pais aprendem a mudar de atitude, a lidar com as aquisições que fazem, com a gradativa independência que vão conquistando, com a intimidade que precisa ser preservada. Porém mudar de atitude não significa mudar de lugar, o lugar de pai e de mãe sempre deve estar marcado e vigente.O vínculo deve ser o do amor, e ainda que o ódio esteja sempre beirando os pais tem o compromisso com a ética e a verdade. Quando isto parte deles é uma conseqüência que seus filhos as adquiram. Contudo, os pais não são os únicos responsáveis pelo destino de seus filhos. Desde muito cedo os sujeitos adquirem um modo muito próprio de conduzir-se e quando este não estiver a favor da vida, e no adolescente comecem a operar ações de destruição, este é um pedido de ajuda que precisa ser escutado, primeiro pelos pais, para que possa ser escutado depois por um analista.
Os pais precisam deixar seus filhos crescerem, confiando no vínculo que existe entre eles, tendo a atitude corajosa de descobrir este jogo que arma-se entre pais e filhos, de abrir e fechar portas que encobrem temas importantes e inquietantes, e que não deixam de existir por não serem desvendados. É preciso coragem para enveredar-se pelos caminhos dessa relação que sempre esconde algo a mais, por ser tão profunda e enraizada.
Claudia Piccolotto Concolatto – Psicóloga