QUEM SÃO? QUE QUEREM? QUE FAZER COM ELES?
sábado, 10 de dezembro de 2011 by Reciclagem de Artigos in

QUEM SÃO? QUE QUEREM? QUE FAZER COM ELES?

EIS QUE CHEGAM ÀS NOSSAS ESCOLAS AS CRIANÇAS E JOVENS DO SÉCULO XXI

Marisa Vorraber Costa
Ufrgs/Ulbra

Este texto foi preparado para a Mesa Redonda Currículo e Identidades , o que exige uma breve explanação sobre como vejo o encaixe entre este tema e aquele sugerido no título que escolhi. Inicio ressaltando que existem muitos jeitos de se abordar a questão da identidade. A própria flexão da palavra no singular ou no plural expressa, por si só, um posicionamento teórico-conceitual. Se perguntarmos “o que quer dizer identidade?” podemos nos referir tanto à noção psicanalítica de sujeito, ao processo psíquico de aquisição de identidade, como à concepção antropológica de conjunto de características distintivas de um grupo, ou à recente tendência culturalista de conceber a identidade como uma “celebração móvel”. O termo identidade é relativamente novo nas ciências sociais, tornando-se um conceito central apenas nos meados do século XX. Contudo, as questões que hoje estão implicadas na rubrica da identidade não foram inteiramente desconhecidas dos clássicos. De acordo com Lomnitz (2002), quando Weber tratou do status, Marx, da consciência de classe e Durkheim, de representações coletivas, estavam ocupados com nuances desta problemática, que se insinuava já nos séculos dezoito e dezenove.
O fato da identidade ocupar um lugar tão proeminente na teoria cultural contemporânea está relacionado às transformações radicais em andamento no mundo e, particularmente, às rupturas, descontinuidades, deslocamentos e instabilidades que se instalam no panorama das teorizações, concepções e manifestações ditas pós-modernas. A identidade é um dos construtos modernos que se estilhaça inapelavelmente. Tal estado de coisas tem sido diagnosticado como “crise da identidade”  condição em que os indivíduos e grupos estariam deslocados tanto de seu lugar no mundo quanto de si mesmos. De uma concepção una, centrada, equilibrada, coerente e estável de identidade, passa-se a fragmentação, efemeridade, mobilidade, superficialidade, flutuação. Podemos ser um e muitos, ao mesmo tempo e em diferentes tempos. A identidade parece que está à deriva no tempo e no espaço, o que a torna permanentemente capturável, ancorável, mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo escorregadia  uma celebração móvel, como recém mencionei, utilizando-me de expressão empregada por Stuart Hall (1998).
Os apontamentos que pretendo destacar em minha participação nesse Colóquio inscrevem-se neste caráter cambiante e plurifacetado das identidades. A partir das observações que venho realizando em um projeto de pesquisa recém iniciado, meu objetivo é problematizar uma das faces das identidades de crianças e jovens escolares  aquela que é fabricada pela interpelação midiática associada ao consumo (de bens, mercadorias, imagens...). Antes disso, contudo, considero prudente estabelecer algumas salvaguardas.
Em primeiro lugar, minha intenção é expor e discutir uma das possibilidades de se pensar tais identidades a partir de sua inscrição no panorama do que vem sendo entendido como condição pós-moderna. Com isto, não pretendo desqualificar outras abordagens e outras maneiras de problematizar a questão da identidade em sua conexão com o currículo. Tampouco penso que a face que procurarei visibilizar seja “a verdadeira”, a mais problemática ou a mais importante. Ela é apenas uma delas, mas suas conseqüências para a sociedade, a educação, a escola e o currículo podem ser tão sérias que não deveríamos negligenciá-la. As imagens e idéias expostas têm como referência algumas escolas públicas de ensino fundamental de Porto Alegre. Interlocutores e interlocutoras desta exposição podem me ajudar a conferir se trata-se de uma evidência localizada e particular ou se, como suponho, é algo mais ou menos disseminado nos espaços escolares contemporâneos deste País. Com isto, já estou argumentando em favor de minha segunda salvaguarda que é a de que me situo em uma perspectiva de análise que acolhe esse caráter plurifacetado, fragmentado e mutante das identidades. Entendo que a constituição da identidade de crianças e jovens como estudantes e como sujeitos do currículo dá-se no entrecruzamento de vários fluxos e redes de poder. Tomo aqui a noção de sujeitos do currículo no sentido foucaultiano de “estar sujeito a”. Quero dizer com isto, também, que os sujeitos escolares são subjetivados simultaneamente por múltiplos discursos. Crianças e jovens quando chegam à escola já foram objeto de um conjunto de discursos, que produziram diferentes “posições de sujeito”, entre eles, aqueles que os constituem como consumidores, como clientes. Finalmente, a última baliza que desejo colocar nesta reflexão é a de que embora estejamos inseridos em redes discursivas que nos antecedem e ultrapassam, as tramas sempre têm lugares de escape. Pelas frestas, desvãos, buracos, as subjetividades deslizam, fluem, e podem tornar-se diversas. Nem todas as pessoas sujeitas aos mesmos discursos são subjetivadas da mesma forma. Embora a tendência seja favorável à homologia, não há um determinismo total e inescapável. Reportando-me aos estudos de Elizabeth Ellsworth (2001), arrisco-me a dizer que o modo de endereçamento (de um filme, de uma propaganda, uma novela, uma música) freqüentemente erra seu alvo, além de que não existe um único e unificado modo de endereçamento.

Quem são? Que querem? Que fazer com eles?

Quando tratamos de identidades, sujeitos e subjetividades, estamos lidando com construtos implicados em problemáticas afins, cujos significados são contíguos. As fantásticas mudanças verificadas a partir da segunda metade do século XX, desencadeadas, sobretudo, pelos vertiginosos avanços nas tecnologias da informação e da comunicação, estão intimamente relacionadas com a verdadeira revolução pela qual passam tais conceitos. A movimentação denominada por Hall (1997) de “virada cultural”, posicionando a cultura no centro dos acontecimentos e da vida nas sociedades do limiar do novo milênio, estabelece nova direção de fluxo na definição da identidade. O sujeito, antes concebido como uma agência centrada, estável e emanadora do sentido identitário, tem sua posição deslocada. A condição pós-moderna, acentuadamente marcada pela visibilidade, objetifica o sujeito em meio à transparente cena contemporânea. Crianças, jovens, mulheres, negros, idosos, docentes, surdos, etc., são exemplos de identidades recriadas e reinventadas de múltiplas formas pelas variadas narrativas que passam a circular de forma planetária, fazendo aparecer novos atores sociais. Contemporaneamente delineiam-se nitidamente as condições que instauram o caráter provisório e construído das identidades. A proliferação discursiva sobre os infantis, por exemplo, acaba por produzir múltiplas narrativas sobre a infância. Todas elas, ao falarem de modos de ser sujeito, interpelam, convocam e subjetivam. Os ditos sobre as crianças inventam infâncias ao mesmo tempo em que subjetivam os infantis, instalam e legitimam formas de lidar com eles. O mesmo raciocínio se aplica a jovens, negros, índios e tantas outras identidades. Nesse panorama é que elas deixam de ser unificadas e passam a ser descentradas e móveis. É nesse cenário, também, que se tem afirmado que as professoras estão preparadas para educar a infância inventada no século XIX ¬ ingênua, dependente dos adultos, imatura e necessitada de proteção  enquanto suas salas de aula estão repletas de crianças do século XXI  cada vez mais independentes, desconcertantes, erotizadas, acostumadas com a instabilidade, a incerteza e a insegurança.
A perspectiva que exponho neste trabalho tem a ver com as recentes formas de assujeitar, subjetivar e narrar as identidades, formas estas forjadas no cenário pós-moderno, na cultura do espetáculo, da visibilidade, do consumo, da comunicação, das mídias, dos computadores, da indústria cultural, da flexibilidade, da descartabilidade.
Já faz algum tempo que tem me chamado a atenção alguns relatos que dizem respeito a certos atravessamentos de artefatos culturais contemporâneos na vida escolar. Uma aproximação com vistas a obter mais detalhes sobre tais acontecimentos tem descortinado um vasto e novo repertório da cultura pós-moderna, predominantemente midiática, que se insinua na vida das pessoas, alterando as rotinas e as práticas cotidianas no interior de instituições consagradas como é o caso da família e da escola.
Há um ano atrás, num destes auditórios da UERJ, quando participava de uma das mesas redondas do II Seminário Internacional sobre Redes de Conhecimento , uma professora perguntou-me se nós, pesquisadores e pesquisadoras voltados para análises da cultura, já havíamos nos dedicado a examinar a invasão dos Yu-Gi-Ohs na vida da garotada e nas escolas. Eu já ouvira falar da tal onda, mas quase nada sabia sobre ela. Alguns dias depois, uma pequena reportagem na Folha de São Paulo, enviada a mim por uma aluna, contava sobre esta nova febre, cujo nome refere-se ao desenho animado/jogo de cartas/vídeogame japonês que se transformara em polêmica  acusado de “coisa do demônio”  no programa de televisão de Gilberto Barros, na Bandeirantes. Logo em seguida, o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em seu suplemento semanal sobre educação, também se ocupava do fenômeno Yu-Gi-Oh. Na curiosa matéria publicada, o foco principal é o projeto desenvolvido por uma escola para fazer frente à invasão dos Yu-Gi-Ohs, no qual as tais cartas com imagens representando demônios orientais são substituídas por tópicos humanistas, retirados do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesta escola é proibido praticar o jogo de cards Yu-Gi-Oh, mas está liberada esta adaptação inventada pelas professoras. Relatos de alunas do curso de pedagogia que foram conhecer o projeto dão conta de que a febre do jogo arrefeceu dentro da escola, contudo, quando entram nos veículos que fazem o transporte escolar, as cartas demoníacas surgem de dentro de bolsos, pastas, lancheiras e arquivos, e o jogo é praticado freneticamente pela gurizada. Solicitados a opinar sobre a versão adaptada, os garotos declararam tê-la acolhido por falta de alternativa. Consideravam o jogo de cartas original, povoado por demônios poderosos, heróis e vilões de todo tipo, instigante, desafiador e estimulante para o raciocínio, qualidades que teriam desaparecido na versão modificada que a escola aprovava.
Se os cards concentraram temporariamente a preferência dos meninos, as bonecas da linhagem Barbie, fabricada pela gigante Mattel, há mais de trinta anos vêm embalando os sonhos das meninas do Brasil e do mundo inteiro como modelo de mulher – adulta, sensual, charmosa, moderna, arrojada, independente, feminista. Milhões de meninas entre três e dez anos aprendem com a boneca lições para ser uma mulher bem sucedida. Contudo, a pedagogia Barbie, assentada, segundo seus críticos, sobre consumismo, futilidade e competição, faz da boneca um brinquedo perigoso, seja pelos valores que dissemina seja por seu inegável sucesso em promover a identificação das meninas com seu universo existencial. Expressão disso é o fato de que todas as meninas entrevistadas em uma escola de periferia declararam orgulhosamente possuir, pelo menos, uma Barbie. A maioria delas colecionava a boneca, sabia exatamente o valor de cada modelo, se era original ou não, e afirmava sonhar em ampliar a coleção. Muitas informaram ser a Barbie o bem mais precioso que possuíam, motivo pelo qual era objeto de todos os seus cuidados e atenções, mantendo-as, também, sempre atentas aos novos lançamentos relacionados à boneca – roupas, sapatos, carros, amigas, namorados, viagens, etc.
Assim como os Yu-Gi-Ohs e as Barbies, inúmeros artefatos da cultura contemporânea, especialmente da cultura popular midiática, moldada, como sabemos, por forças políticas, econômicas, sociais e culturais, têm não só invadido a escola como disputado com ela o espaço pedagógico. A indústria do entretenimento não se restringe a fazer circular mercadorias, ela protagoniza uma pedagogia cultural regida por poderosas dinâmicas comerciais, assentadas sobre estética e prazer, que se impõem sobre as vidas privadas e públicas de crianças, jovens e adultos. Lembro o depoimento de uma ex-aluna, professora da quarta série do ensino fundamental, declarando que precisava destinar, pelo menos os quinze minutos iniciais de sua aula, todas as manhãs, para as crianças poderem discutir o seriado Malhação, da rede Globo. As tramas do capítulo da tarde anterior produziam tal impacto sobre a garotada que era impossível iniciar o trabalho de sala de aula no dia seguinte sem antes permitir que as conversas e trocas de impressões e experiências aplacassem as tensões geradas pelo episódio. Jeitos de ser jovem eram cotejados e debatidos, como se as situações e personagens da novela fossem parte da vida de cada criança, mobilizando seus desejos e sonhos, induzindo escolhas e decisões, e modelando comportamentos.
Em outro departamento da cena escolar, podemos testemunhar, outra vez, a força das corporações empresariais nesta modelagem. Batata frita, salgadinho, hamburguer e refrigerante têm sido os alimentos preferidos da população jovem escolar, em detrimento de uma merenda balanceada e nutritiva. Amplamente difundidos, os maus hábitos alimentares que vêm assolando a população mundial  principalmente crianças e jovens , dobrando o número de obesos , são incentivados por campanhas promocionais que, não raro, potencializam a capacidade dos produtos na geração de prazer e fruição. Adquire-se uma determinada marca de salgadinhos, ou outro alimento qualquer, porque, junto com estes, dentro da embalagem, vem também o bonequinho do Homem-Aranha, a decalco das Meninas Super-Poderosas, o bottom do Ronaldinho ou o prendedor de cabelo da Sandy. Além disso, a maior parte de tais guloseimas estão associadas a desenhos animados, seriados de sucesso, grupos musicais, etc. Salvo raras exceções, as cantinas escolares são uma fulgurante vitrine destes produtos destituídos de valor nutricional mas investidos de significados simbólicos que os tornam altamente desejáveis. Como nos alerta a pesquisa de Isleide Fontenelle (2002) sobre a McDonald´s, quem come um Big Mac ingere uma combinação complexa de valores, desejos, estilo de vida e padrão universal de gosto, embalados pelo nome da marca. Em sua vida cotidiana, jovens e crianças são submetidos ao fascínio e aos apelos estéticos consubstanciados em narrativas que empreendem uma verdadeira cruzada para a mercantilização de objetos, imagens e toda a sorte de artefatos consumíveis. Bem à propósito, poderíamos afirmar que no mundo que Guy Debord (1997) batizou de sociedade do espetáculo, pão e circo se confundem.
Parte considerável das análises contemporâneas têm ressaltado enfaticamente as subjetividades como objeto de sujeição e disciplina. Na escola e na família parece que têm surgido linhas de fuga, mas é muito difícil escapar do que poderíamos denominar “subjetivação cultural”  algo mais ou menos fortuito em termos de endereçamento, mas que atinge a todos nós, de várias formas, em praticamente todas as esferas de nossa existência hoje em dia. Isto porque as práticas de subjetivação escolares, familiares e religiosas requerem, em grande parte, renúncia, abnegação, provação e obediência. A subjetivação cultural, por sua vez, reveste-se quase sempre de peculiaridades que acionam o lúdico, a fascinação, o deleite, ou seja, somos subjetivados na fruição e no prazer, ou na expectativa destes; nestes casos parece que não há resistência.
Assim, não podemos esquecer que os sujeitos do currículo são, antes de tudo, as subjetividades forjadas em uma cultura regida pelos apelos do mercado. As regras, estratégias e o modus operandi das sociedades neoliberais de economias globalizadas articulam-se caprichosamente para fabricar um cliente. Elas operam segundo uma lógica que Veiga-Neto (2000) denomina governamentalidade neoliberal: “uma razão ou tática de governo, uma racionalidade governamental que descobre a economia e que faz da população o seu principal objeto” (p.181). O autor ressalta a utilidade de, inspirados no ímpeto foucaultiano de vontade de saber, irmos adiante, procurando examinar as mudanças que ocorrem tanto nas práticas escolares como nas “relações entre a educação escolarizada e essas novas e estranhas configurações que está assumindo o mundo contemporâneo”(p.181). Seguindo tal sugestão, podemos observar dentro da escola a circulação de crianças e jovens ostentando os ícones de sua inserção neste supermercado global em que, na visão de Jameson (1996), tudo está transformado em mercadoria. A posse de tais mercadorias (imagens, símbolos, narrativas, sentimentos, condutas, objetos...), detentoras de grande visibilidade e atualidade no aparato midiático, oferece ao proprietário um sentimento de pertencer que o converte em membro de uma comunidade de significados compartilhados, de uma cultura comum altamente desejável. Um olhar mais atento nos mostrará também a expansão de um contingente de cidadãos de “segunda classe” – crianças, jovens e adultos pobres, trabalhadores eventuais, sub-empregados, desempregados, não empregáveis  que, segundo a lógica do capitalismo tardio, não podem ficar de fora do circuito do consumo. Mesmo que não estejam habilitados a adquirir mercadorias de primeira linha, inventam-se categorias a eles adaptadas  réplicas, versões baratas de objetos de consumo desejados, que circulam amplamente no fluxo continuo dos mercados globais espetacularizados. Por sua vez, segundo análise de Beatriz Sarlo (1997),

Os miseráveis, os marginalizados, os simplesmente pobres, os operários e os desempregados, os habitantes das cidades e os interioranos encontram na mídia uma cultura em que cada um reconhece sua medida e cada um crê identificar seus gostos e desejos. Esse consumo imaginário (em todos os sentidos da palavra imaginário) reforma os modos com que os setores populares se relacionam com sua própria experiência, com a política, com a linguagem, com o mercado, com os ideais de beleza e saúde. Quer dizer: tudo aquilo que configura uma identidade social. (p.104)

É nas arenas desta cultura  em que a economia tem se apresentado como eixo principal  que se entrecruzam vontades de poder, modelando subjetividades encaixáveis neste ethos. Mas isto não se dá sem embates, e é aí que se travam as lutas pela identidade. A escola é uma destas arenas, no entanto “empobrecida material e simbolicamente, não sabe como fazer para que sua oferta seja mais atraente do que a da cultura audiovisual” (Sarlo, 1997, p.102).

Alienígenas? Quem? Que fazer?

Bill Green e Chris Bigum (1995), em um ensaio publicado na Austrália há dez anos atrás, declaram seu interesse e sua preocupação em pesquisar a emergência de um sujeito-estudante pós-moderno, algo que para eles estava se tornando cada vez mais visível  “um novo tipo de estudante, com novas necessidades e novas capacidades”(p. 209). Segundo estes autores, a juventude do final do século XX é um fenômeno incrivelmente complexo, produzido “na convergência dos discursos contemporâneos sobre a juventude, sobre a cultura da mídia e sobre o pós-modernismo” (p.209). Tal condição cultural específica estaria exercendo um papel determinante não apenas na forma como a juventude é construída, mas também na forma como ela é vivida. Surpreendentemente, dizem eles, ainda não refletimos de forma suficientemente imaginativa sobre como lidar com tais estudantes na escola, e continuamos nos comportando como se essa nova juventude, e também uma nova infância, não existissem, não estivessem lá.
Diante da questão  existem alienígenas em nossas salas de aula?  Green e Bigum (1995) respondem que tudo depende de ponto de vista, já que tanto os docentes podem considerar os estudantes alienígenas, como vice-versa. Contudo, afirmam, parece que professores e professoras inclinam-se a tomar os estudantes como uma “nova estirpe de demônios”, esses “outros”, que invadem nossas aulas e seminários, olhando-nos como se fôssemos seres estranhos e fora de foco. Tais alienígenas, seres distantes que nos miram com olhos frios, que invadem nossas salas de aula aguardando impacientes nossas instruções sobre como herdar a terra, não estão de visita, eles vieram para ficar. (Green e Bigum, 1995)
Segundo os autores, não apenas professoras e professores estão temerosos e comportam-se assim; pais, mães, e a esfera pública convencional em geral tendem a expressar preocupação com o suposto desvio da juventude contemporânea. Em tom apocalíptico e demonstrando um certo pânico moral, as vozes reguladoras e guardiãs da normalidade têm denunciado a invasão de um contingente cuja identidade tem sido descrita como patológica, deficiente, incompleta, inadequada. No epicentro de tais preocupações está a condenação da inclinação juvenil pela cultura da imagem e pelas “frivolidades da televisão”, pela tecnocultura vista como simplificadora e imediatista, bem como sua compulsão pela música pop, interpretada como expressão bárbara da alma. Tais interesses, manifestações evidentes da expansão e penetração da cultura popular na vida contemporânea, são tomados como ameaça aos valores literários, às verdades essenciais e permanentes, àquilo que, supostamente, integra a cultura que vale e que deveria ser ensinada e aprendida. De fato, o que sustenta tais alegações é a noção de que a opção pelas manifestações contemporâneas da cultura representariam um declínio, a derrocada da racionalidade e a vitória das forças das trevas sobre as da luz.
Na visão de Green e Bigum (1995), precisaríamos enfatizar e investigar as implicações dessa mudança cultural e epistemológica para a pedagogia, buscando compreender melhor as relações entre tecnologias e pedagogias, escolarização e cultura da mídia.

Apenas agora estamos começando a registrar a importância educacional e cultural da imagem como um novo princípio organizacional para as relações sociais e as subjetividades. Considerados em conjunto com a informação, esses princípios emergentes contribuem para moldar formas cambiantes de currículo e alfabetismo, novas relações entre textualidade e subjetividade e novas efetivações da racionalidade e da cognição.(p.221)

Enquanto Green e Bigum (1995) ocupam-se com a repercussão das culturas juvenis na escolarização do mundo pós-moderno, um outro conjunto instigante de estudos focaliza as identidades infantis (Steinberg, 2001; Giroux, 2001; Hilty, 2001; Kincheloe, 2001; Nelson e Steinberg, 2001). Aqui, é oportuno invocar a peça publicitária de televisão, veiculada em 2003, na qual nos encantamos com um garotinho sabichão, sonolento e vestindo pijama que, do alto de uma escada, após instruir exaustivamente seus pais na realização de operações no computador e na internet, perguntava-lhes como tinham sobrevivido antes de seu nascimento. Seguindo esta vertente cultural que investe em narrativas sobre crianças sabidas, hábeis, sensíveis e inteligentes, as propagandas e novelas televisivas brasileiras têm sido pródigas na construção de personagens infantis desse tipo. Na novela O Clone ficamos seduzidos pela esperta e envolvente Kadija; em Kubanacan, por Gabriel; na atual Da cor do pecado, dois garotos sensatos e equilibrados  Raí e Otávio  dão lições de maturidade a suas mães, provavelmente inspirados em outro garoto-adulto  o Zeca , que emocionou a audiência da novela Celebridades, ao compreender as mancadas existenciais de um pai alcoólatra, a quem apoiava e incentivava incondicionalmente para abandonar o vício . Estudos sobre a invenção desta criança sabida e auto-suficiente no seio da cultura popular contemporânea têm sido realizados por Kincheloe (2001) que nos alerta para a facilidade com que ao mesmo tempo em que tais identidades são cultivadas em produções fílmicas e televisivas, uma outra movimentação no seio da cultura expõe-nas como ameaçadoras tanto para os adultos como para a ordem social. Crianças com poder, precoces demais, que aprendem fora da ordem estabelecida por certas instituições ou pelas mídias socialmente sancionadas, são consideradas perigosas, assim como o são jovens questionadores e independentes, que subvertem regras e não respeitam cânones. Segundo o autor, há hoje uma onda de demonização da infância e da juventude, cujo objetivo seria contrabalançar a “enorme identificação com a precocidade, a independência e o sucesso da caracterização do Kevin de Macaulay Culkin em Esqueceram de mim.” (Kincheloe, 2001, p. 37). Entre nós isto não tem sido diferente. Enquanto, por um lado, proliferam as representações de crianças e jovens integrados na condição pós-moderna, familiarizados com a cibercultura, com mundos e relacionamentos virtuais, imersos criativamente em novas culturas juvenis, adaptados às formas e composições contemporâneas de “vida familiar”, por outro despontam os bem-sucedidos manuais para pais e professores, bestsellers que celebram a retomada da disciplina, da hierarquia familiar, da definição de limites, das fórmulas domésticas e escolares de vigilância sobre a vida cotidiana de crianças e jovens que estariam fora de controle. Enquanto a mídia impressa e falada têm se dedicado a documentar fartamente as transgressões de crianças e jovens violentos e desregrados, tanto no ambiente escolar e familiar como no espaço público, a literatura de auto-ajuda tem sido pródiga na produção de título e mais títulos, expressão de uma emergente expertise dirigida a este domínio das subjetividades.
Suponho que a estas alturas de minhas considerações, muitos estarão discordando ou, pelo menos, pensando que exagero nos contornos e matizes dessas infâncias e juventudes da transposição do milênio que chegam às nossas escolas. As imagens que apresento a seguir, estão organizadas em três conjuntos e me ajudam a compor este quadro das identidades que procurei esboçar . O primeiro e o segundo é composto por fotos feitas com uma câmera digital, o terceiro é uma coletânea de propagandas de TV.

Conjunto 1
Seqüência de fotos feitas em uma escola da rede municipal de ensino de Porto Alegre. As fotos mostram as crianças e algumas das mercadorias que mencionei ao longo do texto: camisetas, pastas, mochilas, cadernos, chinelos, sapatos, tênis, saias, prendedores de cabelo, tesouras, estojos, toalhinhas, tazzos, bey-blades, cards, caixas de lápis, borrachas, canetas e outros utensílios escolares. Tudo isto está fartamente ilustrado com personagens de desenhos animados, séries de TV, filmes, super-heróis, cantores e cantoras, bandas, propagandas, etc., etc. É o próprio espetáculo pós-moderno protagonizado pela cultura visual midiática invadindo a escola.

Conjunto 2
Apresenta as produções do movimento hip-hop dentro da escola. As imagens mostram, além de cartazes coloridos, decorações em paredes, escadarias, portas, muros. Aparecem também desenhos em capas e páginas de cadernos e arquivos. Pinturas bem-humoradas decoram as portas dos banheiros masculinos. Para contrabalançar, durante as férias, a escola decorou as portas dos banheiros femininos. Observe-se a inspiração generificada que gerou polêmica: as pinturas, neste caso, tinham como tema flores, fitas, topes, bolinhas, etc.

Conjunto 3
Propagandas de Tv. É o “olho” e a narrativa da televisão, inventando histórias que fabricam identidades da infância. É a TV acionando as forças mobilizadoras da infância para induzir as pessoas ao consumo de todo o tipo de produtos.

Finalmente, o que considero ainda relevante destacar em um texto como este, que pretende contemplar uma das perspectivas da conexão entre identidade e currículo, é a forma como as identidades se reconfiguram face à perda de um cenário que se manteve estável por longos anos. Como já procurei argumentar antes, vivemos em um tempo em que novos desenvolvimentos tecnológicos e culturais, muito especialmente a mídia, a computação e a internet, tornaram-se organizadores privilegiados da ação e do significado na vida dos humanos. Esta fantástica mudança desestruturou as instituições consagradas, subverteu práticas centenárias, e instalou em seu lugar a incerteza, a provisoriedade e a imprevisibilidade. Não penso que isto seja indiscutivelmente ruim, mas entendo que a mudança é radical, que as conseqüências são sérias e exigem investimentos na busca de um novo modo de ser e de fazer escola. Não poderíamos vencer uma competição contra as pedagogias da mídia, tampouco deveríamos fugir amedrontados de nossos alunos e alunas, bem como seria inépcia desqualificar e desperdiçar suas habilidades e capacidades para viver num mundo que, concordemos ou não, parece que está se tornando cada vez mais pós-moderno. Por isso, penso que há muitas coisas que se pode fazer dentro de uma perspectiva cultural que acolhe a mudança e a diversidade e não abdica da igualdade. Há que se levar a sério o alerta de Sarlo. (1997)

Se as políticas culturais ficarem sob a responsabilidade do mercado capitalista, os processos de hibridização entre velhas tradições, experiências cotidianas, novos saberes cada vez mais complexos e produtos audiovisuais terão no mercado seu verdadeiro ministério do planejamento. Nesse mercado simbólico, todas as desigualdades ficam mais acentuadas: a desigualdade no acesso à instituição escolar, as desigualdades nas possibilidades de escolha dentro da oferta audiovisual, as desigualdades de formação cultural original. Os setores populares não dispõesm de nenhum recurso todo-poderoso para compensar aquilo que uma escola em crise não lhes pode oferecer (...).(p. 120)


Referências bibliográficas

COSTA, Marisa Vorraber (Org.) A escola tem futuro? Entrevistas. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
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Texto em fase de publicação
Referência
COSTA, Marisa Vorraber. Quem são, que querem, que fazer com eles? Eis que chegam às nossas escolas as crianças e jovens do século XXI. In: MOREIRA, Antonio Flávio; GARCIA, Regina Leite; ALVES, Maria Palmira (Orgs.). Currículo: pensar, sentir e diferir (v. II). Rio de Janeiro: DP&A, 2005. (no prelo).







Dinâmicas de Identidade e Valores
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Minha bandeira pessoal

Esta dinâmica toca num assunto vital para os jovens. Pode ser trabalhada na escola ou nos grupos, podendo ser adaptada à realidade específica.

Objetivo: Possibilitar aos participantes a identificação das suas habilidades e limitações.

Material necessário: Fichas de trabalho, lápis preto, lápis de cor, borrachas.

Descrição da dinâmica:

1. Grupo espalhado pela sala. Sentados. Dar a cada participante uma ficha de trabalho. Distribuir o material de desenho pela sala;

2. Explicar ao grupo que a bandeira geralmente representa um país e significa algo da história desse país. Nesta atividade cada um vai construir sua própria bandeira a partir de seis perguntas feitas pelo coordenador;

3. Pedir que respondam a cada pergunta por intermédio de um desenho ou de um símbolo na área adequada. Os que não quiserem desenhar poderão escrever uma frase ou algumas palavras, mas o coordenador deve procurar incentivar a expressão pelo desenho;

4. O coordenador faz as seguintes perguntas, indicando a área onde devem ser respondidas:

- Qual o seu maior sucesso individual?
- O que gostaria de mudar em você?
- Qual a pessoa que você mais admira?
- Em que atividade você se considera muito bom?
- O que mais valoriza na vida?
- Quais as dificuldades ou facilidades para se trabalhar em grupo?

Dar cerca de vinte minutos para que a bandeira seja confeccionada;

5. Quando todos tiverem terminado, dividir o grupo em subgrupos e pedir que compartilhem suas bandeiras.

6. Abrir o plenário para comentar o que mais chamou a atenção de cada um em sua própria bandeira e na dos companheiros. Contar o que descobriu sobre si mesmo e sobre o grupo.

7. No fechamento do encontro, cada participante diz como se sente após ter compartilhado com o grupo sua história pessoal.


Comentários:

1. Tomar consciência das suas habilidades e limitações propicia um conhecimento mais aprofundado sobre si mesmo, suas habilidades, facilitando as escolhas que precisa fazer na vida;

2. Feita dessa forma, a reflexão torna-se prazerosa, evitando resistências. É um trabalho leve e ao mesmo tempo profundo. Permite que o grupo possa entrar em reflexões como a escolha profissional.


Fonte: Adolescência - Época de Planejar a Vida (AEPV), publicada no livro “Dinâmica de Grupos na Formação de Lideranças”, Ana Maria Gonçalves e Susan Chiode Perpétuo, editora DPeA, Belo Horizonte, MG.
Artigo publicado na edição 309, agosto de 2000, página 17.

Dinâmicas de Integração e Comunicação
Atividades para os alunos descobrirem o que sentem

Atividades simples permitem aos alunos descobrirem o que sentem. As informações servem para conhecê-los melhor, o que ajuda na aprendizagem. Só não vale analisar psicologicamente o que eles dizem.


1. O que vejo e o que sinto

Objetivo: Provocar no aluno a reflexão sobre o estado de espírito dos outros por meio de hipóteses. Pensar sobre como alguém se sente é pressuposto para ações generosas.

Aplicação: Selecione em jornais e revistas, fotos de situações opostas - pessoas em um parque e em lixão, por exemplo. Prefira as que não mostrem o rosto. Peça para os alunos analisarem e descreverem o que estão vendo e pergunte como acham que essas pessoas estão se sentindo.


2. Jogo das cadeiras

Objetivo: Estimular o estudante a refletir sobre como agiria em situações diversas. Desafiá-lo a sustentar opiniões e expor o que pensa e sente, mesmo que isso seja constrangedor no começo. Desenvolver o auto-conhecimento (ao fazer isso, ele consegue estabelecer relações com os sentimentos dos outros).

Aplicação: Posicione quatro cadeiras em torno de uma mesa.
Prepare quatro envelopes, cada um com cinco frases, que podem ser sobre atitudes.

(Quando vejo uma briga eu...) ou sentimentos (Fico triste quando...)

Numere as cadeiras de um a quatro. Cada número corresponde a um envelope.
Quem discordar dele deve se levantar, completar a frase com a sua opinião e retornar à mesa somente ao concordar com alguma afirmação, numa próxima rodada.


Fonte: A Construção da solidariedade e a educação do sentimento na escola. Editora Mercado de Letras.

A construção coletiva do rosto

a) Orientar os participantes para sentarem em círculo;

b) O assessor distribui para cada participante uma folha de papel sulfite e um giz de cera;

c) Em seguida orienta para desenhar o seguinte:

- uma sobrancelha somente;
- passar a folha de papel para as pessoas da direita e pegar a folha da esquerda;
- desenhar a outra sobrancelha na folha que este recebeu;
- passar novamente;
- desenhar um olho;
- passar novamente;
- desenhar outro olho;
- passar a direita e... completar todo o rosto com cada pessoa colocando uma parte (boca, nariz, queixo, orelhas, cabelos).

d) Quando terminar o rosto pedir à pessoa para contemplar o desenho;

e) Orientar para dar personalidade ao desenho final colocando nele seus traços pessoais;

f) Pedir ao grupo para dizer que sentimentos vieram em mente.


Equipe da Casa da Juventude Pe. Burnier,
CAJU, Goiânia, GO.
Subsídio de Apoio da Escola de Educadores de Adolescentes e Jovens.
Site: http://www.casadajuventude.org.br/

Conhecimento mútuo

Objetivo: Oportunizar um maior conhecimento de si mesmo e facilitar melhor relacionamento e integração interpessoal.

Tempo de duração: Aproximadamente 60 minutos.

Material necessário: Lápis e uma folha de papel em branco para todos os participantes.

Ambiente físico: Uma sala, com cadeiras e mesas, suficientemente ampla, para acomodar todos os participantes.


Descrição da dinâmica:

1. O facilitador explicita o objetivo e a dinâmica do exercício.

2. Em continuação, pede que cada um escreva, na folha em branco, alguns dados de sua vida, fazendo isso anonimamente e com letra de fôrma, levando para isso seis a sete minutos.

3. A seguir, o facilitador recolhe as folhas, redistribuindo-as, cabendo a cada qual ler em voz alta a folha que recebeu, uma por uma.

4. Caberá ao grupo descobrir de quem é, ou a quem se refere o conteúdo que acaba de ser lido, justificando a indicação da pessoa.

5. Após um espaço de discussão sobre alguns aspectos da autobiografia de cada um, seguem-se os comentários e a avaliação do exercício.


Fonte: “Relações Humanas Interpessoais, nas convivências grupais e comunitárias”, de Silvino José Fritzen, Editora Vozes: 0 (xx)(24) 2233-9000.
Endereço eletrônico: vendas@vozes.com.br

http://www.pucrs.br/mj/subsidios-dinamicas-59.php
Olhar para os sentimentos

Objetivo: a partir da representação de expressões de sentimentos, debater fatos reais da vida das pessoas.

Encenação: A turma pode ser dividida em pequenos grupos. Cada grupo fica encarregado de encenar a expressão de um ou mais sentimentos, através da fisionomia ou relação entre pessoas. Entre os sentimentos a serem representados podemos propor paz, ódio, medo, tranqüilidade, indiferença, paixão etc.

Debate:
Depois das encenações para o grupo, pode-se analisar se os sentimentos foram bem representados. E iniciar um debate sobre a incidência desses sentimentos na nossa vida: Observamos as expressões das pessoas na vida real para perceber seus sentimentos? Como reagimos quando percebemos que uma pessoa está tomada por um determinado sentimento? Somos sensíveis o suficiente para adequar nossa forma de relacionamento com as pessoas de acordo com os problemas ou emoções delas? Que tipo de ajuda nossa pode ser importante para nosso colega ou amigo, especialmente quando ele estiver com problemas?

Fonte: apostila Paz - como se faz?, de Lia Diskin e Laura Gorresio Roizman.

Dinâmica publicada junto ao artigo "Fobia... que medo é esse? " na edição nº 385, jornal Mundo Jovem, Abril de 2008, página 20.

Aprendizagem dos alunos
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Pedro Demo (UnB, 2008)
Entre propostas que tenho feito para melhorar a aprendizagem dos alunos está, sempre, a expectativa de superar a aula instrucionista, porque ela, ao contrário do que se crê piamente, tolhe a aprendizagem. Muitos docentes recebem mal esta sugestão, porque continuam apegados ao estilo tradicional de “ensinar”, “instruir”, “treinar”. Apesar de todas as agruras dos professores - que são inúmeras, e algumas inaceitáveis - em geral eles gostam de dar aula. A definição mais corriqueira de professor é dar aula. Freqüentemente ouço que aula é “cachaça”, a ponto de não importar muito o que se paga por ela. Alguns professores, ocupados em suas profissões específicas, aparecem na escola e principalmente na universidade só para dar aula, e vêem nisso um jeito atraente de continuarem vinculados ao contato com estudantes. Alguns são “horistas”, no sentido de que dão uma ou outra aula, como atividade lateral, eventual; outros vivem disso, dando aula em vários lugares, para ganharem melhor. Em sentido bem concreto, aula é xodó de professor. Ele gosta de aula, em geral, muito mais que os alunos.
Entretanto, na dinâmica dos novos tempos marcados por novas tecnologias e novos ambientes de aprendizagem, aula está se esvaindo, porque corresponde a um gesto completamente obsoleto: transmitir conhecimento, conforme a carga curricular. Na percepção de todos os grandes educadores, como Sócrates, Piaget, Vygotsky, conhecimento não se transmite. Se constrói, desconstrói e reconstrói. O que se transmite é informação digitalizada. Esta pode ser gravada, armazenada, guardada, enviada, em sua condição de sintaxe. Já conhecimento, como dinâmica semântica, existe na e como dinâmica desconstrutiva e reconstrutiva. Podemos, então, visualizar a aula ou como expediente de transmissão - aí não faz mais que lidar com informação disponível - ou como expediente de reconstrução de conhecimento - aí é tipicamente dispositivo auxiliar, cujo sentido é promover a construção de conhecimento, não sua substituição.
Neste texto procuro circunscrever o papel da aula hoje, levando em conta novos ambientes de aprendizagem e sua função como instrumento possivelmente pertinente de estudo, pesquisa e elaboração. O sentido da aula é a aprendizagem do aluno. Se esta não ocorrer, não há aula que possa ser apreciada.
Disponível em:
http://pedrodemo.sites.uol.com.br/textos/xodo.html

NOVENA NOSSA SENHORA DO CARMO
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Santa que Ilumina e Orienta a sua jornada no trabalho e na hora de cuidar do seu lar.

1º dia
Ó Maria, Virgem mãe Imaculada, Rainha do Carmelo, que foste contemplada pelo profeta Elias na nuvenzinha que subia do mar, depois transformada em chuva copiosa, derramai sobre toda a humanidade as graças do vosso coração imaculado e convertei aos pobres pecadores.
Ave-Maria... Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós.

2º dia
Rainha e mãe do Carmelo virgem e mãe imaculada, que durante séculos foste honrada em vossa maternidade divina no monte Carmelo pelo profeta Elias e seus sucessores – os filhos dos profetas – fazei reinar em nossas famílias esta mesma entranhada devoção que torne cada vez mais presentes em nossos lares o vosso Divino filho Jesus que nos guarde, para a vida eterna.
Ave-Maria... Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós

3º dia
Ó Maria Imaculada, virgem santíssima do Carmo, que visitastes vossos filhos carmelitas no monte Carmelo, consolando-os dando-lhes graças abundantes, visitai também as nossas almas, ajudando-nos a fugir do pecado e a praticar com amor as obras de misericórdia.
Ave-Maria... Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós.

4º dia
Maria Virgem, imaculada, rainha do Carmelo, lembrai-vos que vossos filhos carmelitas do monte Carmelo após o pentecostes abraçaram o evangelho e o anunciaram por toda parte, ensinando também todos a vos conheceram e amarem, e no monte Carmelo vos consagraram o primeiro templo do mundo em vossa honra, daí-nos muitos missionários, que por toda parte vos façam conhecer para a dilatação do reino de Jesus.
Ave-Maria... Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós.

5º dia
Maria Rainha, e mãe das carmelitas, que lhes destes como penhor da salvação o santo escapulário, nós vos agradecemos e vos suplicamos a graça de viver na fidelidade à lei de Deus para que em nossa morte possamos contar com a vossa presença e ir ao céu contemplar-vos eternamente.
Ave-Maria... Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós.

6º dia
Maria, virgem mãe imaculada, Rainha do Carmelo, que tendes concedido as mais extraordianárias graças através do vosso santo escapulário, ajudai-me a trazê-lo dignamente, conservando a pureza de coração e de costumes, repelindo tudo o quepossa magoar o vosso olhar puríssimo.
Ave-Maria... Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós.




7º dia
Rainha e Mãe do Carmelo, que fizestes grandes milagres através do santo escapulário, cobri o mundo com esplendor de vosso imaculado coração para que seja enfraquecido o reino do mal e do pecado, e todos os povos se aproximem de vós para imitar vossa pureza e caridade.
Ave-Maria... Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós.

8º dia
Maria Virgem, Mãe Imaculada Rainha do Carmelo, que sempre concedestes as maiores graças aos carmelitas, enviai-nos muitas vocações sacerdotais, religiosas e para o Carmelo secular, para que o vosso nome seja sempre, mais glorificado, para a gloria do vosso filho Jesus Cristo.
Ave-Maria... Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós.

9º dia
Maria, Rainha e Mãe do Carmelo, que velais pela santa igreja com maternal amor, abençoai o santo padre, o nosso bispo, os sacerdotes, os religiosos e todo o povo cristão.
Abençoai a cada um de nós que desejamos vossa proteção agora e na hora de nossa morte.
Ave-Maria... Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós.

Oração final para todos os dias

Bendita e Imaculada Virgem Maria, beleza e gloria do Carmelo, vós que tratais com bondade inteiramente especial aqueles que se vestem do vosso amadissimo hábito, volvei sobre mim também um olhar propicio e cobri-me com o manto da vossa maternal proteção. Pelo vosso poder fortificai a minha fraqueza; pela vossa sabedoria esclarecei as trevas do meu espírito, aumentai em mim a Fe, a esperança e a caridade. Ornai a minha alma com as virtudes que me faça agradável ao vosso divino filho e a vós.
Assisti-me durante a vida, consolai-me na morte pela vossa amável presença á Santíssima Trindade, como vosso filho dedicado para vós louvar e bendizer eternamente no paraíso Amem.

RESENHA: como fazer?
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Resenha Crítica é a apresentação do conteúdo de uma obra, acompanhada de uma avaliação crítica.

Expõe-se claramente e com certos detalhes o conteúdo da obra para posteriormente desenvolver uma apreciação crítica do conteúdo.

A resenha crítica consiste na leitura, resumo e comentário crítico de um livro ou texto.

Para a elaboração do comentário crítico, utilizam-se opiniões de diversos autores da comunidade científica em relação as idéias defendidas pelo autor e se estabelece todo tipo de comparação com os enfoques, métodos de investigação e formas de exposição de outros autores
Resenha crítica é uma descrição minuciosa que compreende certo número de fatos: é a apresentação do conteúdo de uma obra. Consiste na leitura, resumo, na crítica e na formulação de um conceito de valor do livro feitos pelo resenhista.

A finalidade de uma resenha é informar o leitor, de maneira objetiva e cortês, sobre o assunto tratado no livro ou artigo, evidenciando a contribuição do autor: novas abordagens, novos conhecimentos, novas teorias.

A resenha visa, portanto, a apresentar uma síntese das idéias fundamentais da obra.

O resenhista deve resumir o assunto e apontar as falhas e os erros de informação encontrados, sem entrar em muitos pormenores e, ao mesmo tempo, tecer elogios aos méritos da obra, desde que sinceros e ponderados.

Lakatos e Marconi (1996, p. 90) afirmam que: resenha é uma descrição minuciosa que compreende certo número de fatos. Resenha crítica é a apresentação do conteúdo de uma obra. Consiste na leitura, no resumo, na crítica e na formulação de um conceito de valor do texto feito pelo resenhista.

adaptado de ww.cesur.br/downloads/laudes/Adm._Comex/RESENHA_CRITICA.doc
Aqui vai um link com outros comentários e um exemplo de resenha feito por Mariza Lajolo
http://www.uss.br/web/arquivos/comofazerumaresenha.pdf












Tipos de Resenha

Até agora eu falei sobre as resenhas de uma forma geral e livre e esses dados são suficientes para você já esboçar alguns parágrafos.

Contudo, as resenhas apresentam algumas divisões que vale destacar. A mais conhecida delas é a resenha acadêmica, que apresenta moldes bastante rígidos, responsáveis pela padronização dos textos científicos.

Ela, por sua vez, também se subdivide em resenha crítica, resenha descritiva e resenha temática.

Na resenha acadêmica crítica, os oito passos a seguir formam um guia ideal para uma produção completa:

(Siga esse passo a passo)

Identifique a obra: coloque os dados bibliográficos essenciais do livro ou artigo que você vai resenhar;

Apresente da obra: situe o leitor descrevendo em poucas linhas todo o conteúdo do texto a ser resenhado;

Descreva a estrutura: fale sobre a divisão em capítulos, em seções, sobre o foco narrativo ou até, de forma sutil, o número de páginas do texto completo;

Descreva o conteúdo: Aqui sim, utilize de 3 a 5 parágrafos para resumir claramente o texto resenhado;

Analise de forma crítica: Nessa parte, e apenas nessa parte, você vai dar sua opinião. Argumente baseando-se em teorias de outros autores, fazendo comparações ou até mesmo utilizando-se de explicações que foram dadas em aula. É difícil encontrarmos resenhas que utilizam mais de 3 parágrafos para isso, porém não há um limite estabelecido. Dê asas ao seu senso crítico.

Na resenha acadêmica descritiva, os passos são exatamente os mesmos, excluindo-se o passo de número 5.

Como o próprio nome já diz, a resenha descritiva apenas descreve, não expõe a opinião o resenhista. (EM NOSSA RESENHA CONSTARÁSUA OPINIÃO)










Finalmente, na resenha temática, você fala de vários textos que tenham um assunto (tema) em comum. Os passos são um pouco mais simples:
Apresente o tema: Diga ao leitor qual é o assunto principal dos textos que serão tratados e o motivo por você ter escolhido esse assunto;
Resuma os textos: Utilize um parágrafo para cada texto, diga logo no início quem é o autor e explique o que ele diz sobre aquele assunto;



(IMPORTANTE)
Conclua: Você acabou de explicar cada um dos textos, agora é sua vez de opinar e tentar chegar a uma conclusão sobre o tema tratado;

Mostre as fontes: Coloque as referências Bibliográficas de cada um dos textos que você usou;

Assine e identifique-se: Coloque seu nome e uma breve descrição do tipo “Nome completo, graduação e Pós graduando.....”.

Conclusão
Fazer uma resenha parece muito fácil à primeira vista, mas devemos tomar muito cuidado, pois dependendo do lugar, resenhistas podem fazer um livro mofar nas prateleiras ou transformar um filme em um verdadeiro fracasso.
As resenhas são ainda, além de um ótimo guia para os apreciadores da arte em geral, uma ferramenta essencial para acadêmicos que precisam selecionar quantidades enormes de conteúdo em um tempo relativamente pequeno.
Agora é questão de colocar a mão na massa e começar a produzir suas próprias resenhas!

DOSSIÊ: "POLÍTICAS EDUCACIONAIS E DIFERENÇAS CULTURAIS"
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DOSSIÊ: "POLÍTICAS EDUCACIONAIS E DIFERENÇAS CULTURAIS"

Articulando raça e classe: efeitos para a construção da identidade afrodescendente


José Licínio Backes

Doutor em educação e professor do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). E-mail: backes@ucdb.br

O artigo inspira-se no campo teórico dos Estudos Culturais. Este campo afirma que não há razões para apostas em noções homogêneas de identidades coletivas, seja de raça/etnia, classe, cultura ou gênero, pois os sujeitos são imprevisíveis e nômades. Segundo Donald (2000), uma parte da história do sujeito encontra-se nas "(...) improvisações da vida cotidiana que, embora sejam pouco reconhecidas, são bastante engenhosas" (p. 65). É na vida cotidiana que os sujeitos se vêem diante do dilema da reprodução cultural e da transgressão cultural, articulando a sua identidade no encontro com as diferenças. Assim, quando a vida cotidiana adquire novos contornos, mudam também os processos de construção da identidade cultural. Mudando as identidades, muda também a cultura, pois os sujeitos mudam a cultura e a cultura muda os sujeitos. Desta forma, quando determinados grupos culturais que historicamente foram excluídos de alguns espaços, como no caso desta pesquisa, do espaço da universidade, o ocupam, novos sentidos são produzidos, provocando efeitos nas identidades culturais, fomentando negociações: "Com a palavra negociação, tento chamar a atenção para a estrutura de interação que embasa os movimentos políticos que tentam articular elementos antagônicos e oposicionais sem a racionalidade redentora da superação dialética ou da transcendência" (Bhabha, 2001, p. 52).

Neste sentido, pode-se dizer que as negociações fazem parte da cultura. Cultura é o campo onde o sentido das coisas, das identidades, das diferenças é negociado e construído: "(...) toda a nossa conduta e todas as nossas ações são moldadas, influenciadas e, desta forma, reguladas normativamente pelos significados culturais" (Hall, 1997, p. 41). Ela é um campo de luta e contestação. O sentido é produzido no interior da cultura e está circunscrito ao próprio contexto cultural. Não existe sentido fora da cultura. Estes sentidos/significados são produzidos socialmente, o que significa reconhecer que são estabelecidos pelas relações de poder. A cultura produz as identidades e as diferenças. A cultura produz identidades normais/anormais, legítimas/ilegítimas, dignas/indignas, brancas/negras... Como afirma Silva (1996), as narrativas culturais "(...) representam os diferentes grupos sociais de forma diferente: enquanto as formas de vida de alguns grupos são valorizadas e instituídas como cânone, as de outros são desvalorizadas e proscritas" (p. 166). A cultura produz tudo e a todos e todas. Ela nos faz sentir vergonha, procurar outras identificações, mas também nos faz sentir orgulho de pertencimento. A cultura é ambivalente. A cultura1 diz quem nós somos, o que não devemos ser, o que devemos nos tornar, como devemos nos comportar, que lugares sociais podemos ocupar. A cultura associa, muitas vezes, a diferença com inferioridade. A cultura produz a lugarização (Bauman, 2001), demarcando os lugares que cada um pode/deve ocupar. A cultura legitima a idéia de que alguns devem viver em favelas e outros em mansões. A cultura produz a idéia de que alguns devem ser sem-terra e outros latifundiários. A cultura (branca, o mito da democracia racial) produz [equivocadamente] a idéia de que não ser branco é ser inferior, é ser menos, portanto não merece o mesmo salário, acesso à universidade (principalmente se ela for pública e federal!), não merece ter acesso igual aos bens materiais.2 A cultura posiciona os sujeitos, estabelece as fronteiras entre o "bem" e o "mal", produz os "deuses" e os "demônios". A cultura atravessa tudo. Isto significa dizer que todos os seres humanos são produtores de cultura e ao mesmo tempo um produto da cultura. Daí que não faz sentido falar em mais cultura, menos cultura, baixa cultura, alta cultura. Todos somos sujeitos de cultura e da cultura.

Mas a cultura não faz só isso. A cultura é ambivalente. É cheia de práticas contraditórias. A cultura faz com que as pessoas fiquem indignadas diante das injustiças, diante das discriminações/racismos, diante da dor do outro e da outra. A cultura produz os movimentos negros de resistência. A cultura produz o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Produz os movimentos feministas, os movimentos gays... A cultura produz a coragem e a convicção de lutarmos com as nossas foças e estabelecermos alianças para minarmos os processos de dominação/exploração, discriminação e racismo. A cultura produz as identidades e as diferenças.

As identidades/diferenças culturais são o resultado de inúmeros e infinitos processos de negociação cultural (Bhabha, 2001) que se desenvolvem em contextos específicos e em condições particulares de emergência. Como decorrência disso, há a impossibilidade de fixar, essencializar e cristalizar tanto as identidades quanto as diferenças. Segundo Hall (2003), em nenhum outro momento histórico a vida cultural, sobretudo do Ocidente, foi tão perturbada e transformada pelas vozes das margens como agora.3 Mais do que uma abertura promovida dentro dos espaços dominantes, essa perturbação é o resultado das políticas culturais da diferença desenvolvidas pelos "diferentes":4 "Isto vale não somente para a raça, mas também para outras etnicidades marginalizadas, assim como o feminismo e as políticas sexuais no movimento de gays e lésbicas, como resultado de um novo tipo de política cultural" (Hall, 2003, p. 338).

O artigo insere-se neste contexto de políticas culturais,5 no qual posições cristalizadas são perturbadas pelas vozes e experiências de grupos que reivindicam a sua diferença como legítima. Sabemos que no Brasil a educação de qualidade, muito mais do que um direito, continua sendo um privilégio para poucos. À medida que aumenta o nível de ensino, diminuem as chances das classes populares terem acesso a ela. Quando estas classes populares são negras, por razões históricas de discriminação e preconceito, as dificuldades são maiores ainda.

Porém, apesar dessas dificuldades, os afrodescendentes, por meio de muita luta, organização e resistência, subvertem a lógica da exclusão do ensino superior e, ao ocuparem este espaço, afirmam sua identidade cultural/racial, contribuindo positivamente para que mais sujeitos deste grupo cultural e de outros grupos culturais em situação de desvantagem sintam-se encorajados para lutar e ocupar lugares tradicionalmente freqüentados pelos grupos dominantes.

A problemática deste texto centra-se em um desses movimentos, o Projeto Negraeva, nascido na comunidade São Benedito, comunidade negra, localizada no município de Campo Grande (MS). A entrada das classes populares, no caso estudantes afrodescendentes, na universidade representa um fator decisivo para o processo identitário para os sujeitos diretamente envolvidos, bem como para todo o grupo racial. Este aspecto positivo começa antes mesmo da entrada na universidade, pois, para que esta se torne possível, são necessários encontros, reuniões, discussões, ou seja, é preciso uma forte organização popular. Nestes grupos desenvolve-se um sentimento de pertencimento racial, por meio do qual seus membros vão se fortalecendo para enfrentar os processos discriminatórios aos quais são submetidos cotidianamente, seja pelo tipo de trabalho que exercem (empregada doméstica, faxineiro...), pelas piadas, pelas práticas pedagógicas, pela exploração maior (salários mais baixos)... Nesse sentido, cabe destacar, na íntegra, a explicação da coordenadora do Negraeva, universitária beneficiada pelo projeto:

Nunca, ninguém, nenhum de nós tinha experiência de montar projeto. Nunca escrevemos um projeto sequer e aquele era o primeiro projeto que a gente sentava para fazer. Depois disso, num final de semana a gente discutindo, o professor6 (...) chega na comunidade para fazer uma visita, vai na minha casa conversar com a minha mãe e ele vê o grupo reunido, num domingo à tarde sentado lá um grupo de jovens discutindo o que escrever, o que deixar de escrever e se interessou em saber o que a gente estava fazendo, pegou o documento foi ler, era o edital de convocação do Concurso. Entrou lá para dentro e continuou conversando, sentou e continuou conversando com a minha mãe e lendo o material e a gente lá escrevendo, discutindo, falando, o que a gente queria, o que a gente deixava de querer. Daí ele voltou e perguntou: mas o que vocês estão tentando fazer? Nós estamos tentando montar o projeto, (...) a entrada dos alunos, de nós negros na universidade. Ele disse: Eu vou ajudar vocês, eu posso ler o que vocês estão escrevendo. Ele disse: vocês começaram pelo lado contrário de um projeto. Aí ele sentou com a gente, explicou item por item do edital (...). Então é o seguinte, nós não queremos que a universidade venha, adote o projeto e venha executar dentro da comunidade, a proposta nossa é nós elaborarmos o projeto e nós executarmos. A universidade, ela pode nos auxiliar, mas ela jamais será a executora do projeto aqui dentro da comunidade, nós queremos ser os sujeitos da nossa história (...). Fechamos o projeto em cima disso, passamos o Natal, o Ano Novo, janeiro, todo sentado em cima do projeto. A gente ia para a casa do professor (...) nos finais de semana, oito horas da manhã, saía três e meia, quatro horas da manhã. Ele levava a gente em casa... na porta da casa, no outro dia voltava, durante a semana a gente ia para a casa dele, ia para a universidade, escrevia com ele, ainda a gente escrevia e mandava para ele dar uma olhada, ele mandava a gente voltar e fazer isso, buscar, pesquisar... Assim foi feito o projeto, depois de tudo nós passamos por uma, tipo uma banca do Movimento Negro. A gente apresentou ele no fórum das entidades do Movimento Negro e o único projeto que foi todo anotadinho, todo estruturadinho para apresentar foi o nosso, as outras entidades deram desculpas de que o disquete não abria, outra deu a desculpa que tinha esquecido o trabalho em casa... e o único projeto apresentado foi o nosso, para o fórum. Só fomos nós a apresentar. (Ana)

Neste sentido, para compreender alguns efeitos para a construção da identidade cultural que o acesso à universidade por meio Projeto Negraeva propicia, é que foram entrevistados os universitários participantes do projeto Negraeva, criado em 2002 com o objetivo de apoiar financeiramente universitários negros da comunidade São Benedito. São ao todo 17 sujeitos, que concluíram seus cursos em 2005 ou estão em fase de conclusão. As entrevistas foram individuais, gravadas e posteriormente transcritas, realizadas no próprio ambiente universitário. Todos os sujeitos contatados se dispuseram a participar da pesquisa, entendendo que esta poderia ser uma forma de divulgar positivamente o projeto, bem como as políticas de cotas para universitários negros. Como afirma Ana, universitária do projeto:

Eu espero que essa pesquisa que está sendo feita com o Projeto Negraeva, com os alunos do Projeto, que ela mostre não só para os alunos, mas também que ela possa ser usada dentro da academia de uma forma, de uma ação afirmativa, positiva, realmente positiva... Você trabalhar a valorização do aluno negro, a permanência dele, a sua manutenção dentro da universidade é muito importante. Não basta só a bolsa, o financeiro, mas o apoio pessoal que cada aluno recebe dentro da universidade, dos seus professores é fundamental.

Utilizo esta fala para introduzir um dos elementos que considero central, tanto na discussão de uma ação afirmativa como do ponto de vista teórico, bem como uma das implicações para a construção da identidade cultural, isto é, se a discussão deve pautar-se em torno da classe a que estes sujeitos pertencem ou se é uma questão racial. Tal discussão justifica-se à medida que se observou pelas entrevistas realizadas que todos, sem exceção, apontaram como a maior dificuldade enfrentada no ensino superior a questão financeira, inclusive esta sendo destacada como o motivo pelo qual alguns universitários do projeto acabaram desistindo. Mesmo a aluna anteriormente citada, que afirmou não ser só uma questão financeira, destacou num outro momento da entrevista que a sua maior dificuldade foi financeira e, por este motivo, quase abandonou a universidade.

Assim, num primeiro momento, parece que somos levados a acreditar que, de fato, a classe é mais decisiva do que a raça. Porém, ao efetuarmos uma análise, tendo como campo teórico os Estudos Culturais, desconstruímos esta primeira noção e começamos a entender que não se trata de uma discussão ao estilo ou/ou (ou classe/ou raça), mas de uma articulação que tem

(...) a grande vantagem de nos possibilitar pensar como práticas específicas (articuladas em torno de contradições que não surgem da mesma forma, no momento e no mesmo ponto) podem todavia ser pensadas conjuntamente. (Hall, 2003, p. 152)

Articular a raça com a classe não tem sido uma tarefa fácil7 no campo dos Estudos Culturais. Hall (op. cit.), ao fazer a genealogia destes Estudos, lembra que

(...) fazer com que os estudos culturais colocassem na sua agenda as questões críticas de raça, a política racial, a resistência ao racismo, questões críticas da política cultural, consistiu numa ferrenha luta teórica. (Idem, ibid., p. 210)

A tendência geralmente acaba sendo ou um determinismo de classe ou um determinismo de raça, não vendo as inúmeras articulações produzidas na vida social. Ambos não dão conta de compreender os processos identitários. O determinismo de classe não permite compreender as inúmeras diferenciações "(...) tais como as divisões sociais e as contradições que surgem em torno de raça, etnia, nacionalidade e gênero" (idem, ibid., p. 304). Já o determinismo de raça deixa de olhar para o necessário atravessamento econômico que todas as dimensões da vida têm, inclusive a construção da identidade cultural. O acesso ou não a determinados bens materiais implica uma forma específica de identidade cultural e racial. A dimensão econômica atravessa a raça e a cultura e vice-versa. Segundo Hall (2003), raça é "(...) a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo" (p. 69, grifo nosso).

A não-aceitação do inter-relacionamento economia e raça "(...) provou ser um dos problemas teóricos mais difíceis e complexos de se abordar" (idem, ibid., p. 327). Parece que as opções disponíveis são a aceitação de que a raça é uma decorrência das forças de trabalho, portanto da economia, ou o contrário: negligencia-se a exploração do capital e enfatiza-se a centralidade da raça. Diante dessas duas possibilidades, que, segundo Hall (2003), são abordagens reducionistas, o desafio é compreendê-las de forma articulada, isto é, reconhecer que elas podem ou não estar relacionadas, dependendo do contexto em que são produzidas, gerando efeitos diferentes, igualmente dependentes de seu contexto.

Portanto, raça e questões de classe não estão necessariamente relacionadas em todos os contextos, mas não faz sentido concluir que nunca estarão, quando se observa essa desvinculação em alguns momentos. Da mesma forma, não se pode inferir o contrário, ou seja, o fato de haver relação em alguns contextos levar à conclusão de que sempre haverá. Tudo depende dos processos específicos e das condições particulares de emergência. Quando observo que os alunos do projeto Negraeva apontam que o fator financeiro é o maior problema, não posso deixar de reconhecer a classe como categoria importante. Mas daí a concluir que tudo se explica pela classe seria um equívoco, pois seria não levar em conta o papel que a cultura opera sobre os sujeitos, por meio dos inúmeros discursos que circulam, instituindo posições de sujeito, legitimando modos de vida e de conduta, desautorizando outros. É pela cultura (branca) que os sujeitos negros foram sendo representados como inferiores, e em decorrência desta representação ainda hoje são mais explorados economicamente. Como afirma Valente (1994, p. 23): "Como justificativa da escravidão negro-africana, os países colonialistas alegaram que os negros pertenciam a uma raça inferior, possuíam costumes primitivos, e por isso era necessário que fossem 'civilizados' e 'cristianizados'". A exploração econômica só se reproduz por meio de um conjunto de "justificativas" construídas no interior da cultura. Munanga (1999, p. 51), analisando os pensadores do Brasil pós-escravista, afirma: "Toda a preocupação da elite, apoiada nas teorias racistas da época, diz respeito à influência negativa que poderia resultar da herança inferior do negro nesse processo de formação da identidade étnica brasileira". Mesmo que o autor esteja se referindo ao período posterior à escravidão, pode-se argumentar que esse receio esteve presente desde a chegada dos portugueses. Observa-se, assim, que a exclusão dos negros do mercado de trabalho assalariado (questão econômica) tornou-se possível por causa dos significados culturais produzidos e impostos pela classe/raça branca.

Ao seguir a articulação entre raça e classe como forma de compreender os efeitos do acesso à universidade na construção da identidade cultural dos afrodescendentes, lembro que existe toda uma discussão teórica que envolve o uso do termo "raça" e que não pode ser desconsiderada. Esse termo foi fortemente acentuado no século XIX, quando era entendido como um conjunto de características naturais e físicas – portanto, biológicas – vistas como qualidades ou déficits de determinados grupos humanos. Ou seja, mesmo que a raça fosse vista como uma essência biológica que diferenciava os grupos, ela logo foi estendida para "(...) os domínios social e político e seus pressupostos regulavam, também, a vida nas colônias na época" (Meyer, 2000, p. 65). Diante dessa ênfase biológica do termo "raça" é que foi introduzido o conceito de etnia para enfatizar as questões culturais e os processos de produção das identidades e diferenças. Porém, os Estudos Culturais enfatizam que a raça não é uma categoria biológica, mas discursiva: "'Raça' é uma construção política e social" (Hall, 2003, p. 69). Além disso, não é a simples substituição do termo "raça" por "etnia" que resolve a questão, até porque na construção das identidades e diferenças, "Na maioria das vezes, os discursos da diferença biológica e cultural estão em jogo simultaneamente" (idem, ibid., p. 71). Nesse sentido, conforme Hall (2003) e considerando que, com a "crítica pós-estruturalista ao conceito de 'raça', que o vê como sendo ele próprio uma construção discursiva e cultural, as distinções entre os dois termos tendem a desaparecer" (Silva, 2000b, p. 56), utilizo raça/etnia, mas entendendo que tanto uma quanto a outra são construções culturais, atravessadas por relações de poder. Elas não são essenciais, naturais ou biológicas. Elas são relacionais, construídas social, política e culturalmente.

No dizer de Hall (2003), mesmo que a introdução de ambivalência, hibridismo e interdependência perturbe e transgrida "(...) a estabilidade do ordenamento hierárquico binário do campo cultural em alto/baixo, não destroem a força operacional do princípio hierárquico da cultura" (Hall, 2003, p. 239). Ainda: "(...) não mais se pode dizer, pelo fato de a 'raça' não ser uma categoria científica válida, que 'de forma alguma enfraquece sua eficácia simbólica e social'" (idem, ibid.).

Além do que já foi apontado, é necessário salientar que o fato de todos os entrevistados terem destacado o aspecto financeiro como o mais decisivo para a sua manutenção na universidade, e ao mesmo tempo a maior dificuldade enfrentada, tem a ver com o tipo de universidade que os sujeitos desta pesquisa freqüentam: trata-se de universidades particulares que, por sua própria lógica de organização, só permitem que seus alunos façam a rematrícula se estiverem rigorosamente em dia com o pagamento das mensalidades. Assim, pelos depoimentos dos entrevistados pode-se depreender que, de fato, era uma angústia permanente causada pelo atraso no pagamento, pelas tentativas frustradas de renegociação das dívidas, pelas bolsas sociais da própria Instituição que tinham que ser conquistadas, uma vez que os recursos conseguidos pelo Projeto Negraeva eram insuficientes para cobrir as mensalidades (um salário mínimo, enquanto a mensalidade variava de 1,7 a 2,5 salários mínimos, dependendo do curso) e só existiram durante um ano:

No meu caso é condições financeiras. Você tem que trabalhar o dia inteiro. Aí vir para a universidade à noite, sem janta, muitas vezes sem dinheiro para comprar um lanche, sem dinheiro para tirar xérox. (Ana)

Eu trabalhava como doméstica, ganhava um salário mínimo. Então quando eu entrei aqui eu ganhava duzentos e vinte reais que era o salário mínimo e a mensalidade era trezentos e setenta. (Sara)

Dificuldades financeiras, porque a Fundação8 foi só um ano que deu esta ajuda financeira. Depois acabou essa ajuda que a gente tinha. Então para mim foi complicado por isso. Porque o salário meu não era condizente com o valor da mensalidade, mas acabei. Minha dificuldade maior foi a financeira. (Lúcia)

Antes de fazer este curso, eu já tinha passado por aqui três vezes. Comecei três cursos e parei. Falta de recursos. (Lia)

Reitero que esta constatação econômica, longe de poder ser explicada de forma desvinculada da questão racial, está na verdade profundamente articulada com esta, como já argumentei anteriormente. Raça e classe principalmente no Brasil possuem uma estreita vinculação, como continuam mostrando os números do ibge (Brasil, 2003): 21% das mulheres negras são empregadas domésticas e dessas somente 23% têm carteira assinada, ao passo que 12,5% das mulheres brancas trabalham como empregadas domésticas, sendo que 30% delas têm carteira assinada. Considerando todas as profissões, 22,4% dos negros trabalham sem carteira assinada ao passo que em brancos esse número cai para 16,2%. Além disso 5,9% dos brancos são empregadores e apenas 2,3% de negros são empregadores. Também na saúde as mulheres negras estão em desvantagem: 46,27% delas nunca fizeram exame de prevenção contra o câncer de mama, ao passo que esse número diminui para 28,73% para mulheres brancas. Na educação ocorre o mesmo: ainda que na última década (1993-2003) se observe um aumento da média de estudo dos brasileiros em torno de 1,5 anos, não houve diminuição significativa entre o tempo de estudo dos brancos e negros (caiu de 2,1 para 1,9). O analfabetismo continua muito maior entre os negros (16,8%), ao passo que entre brancos é de 7,1%. Com todos estes indicativos, não é surpresa que os dados apontem que quanto à distribuição de renda observa-se que dos 10% mais pobres no Brasil, 64,6% são negros e apenas 22,3 % de negros fazem parte dos 10% mais ricos. Além disso, 43% dos negros encontram-se abaixo da linha de pobreza enquanto esse índice é de 20% entre os brancos.

Como se pode perceber pelos números do ibge, os negros estão em desvantagem em todos os segmentos pesquisados: saúde, emprego, renda, educação. Tudo isto mostra, como estamos argumentando, que a questão racial está articulada com a questão de classe e por isso pensamos que elas devem ser pesquisadas desta forma. O outro dado que não deixa dúvidas quanto a esta imbricação de classe e raça é o que revelou o Índice de Desenvolvimentos Humano (IDH) de 2005: o Brasil ocupa o 72º lugar. Porém, se o IDH fosse calculado somente entre a população brasileira branca ocuparia o 44º lugar e, do outro extremo, se fosse considerado apenas o IDH de brasileiros negros estaria no 105º no ranking mundial. Desta forma pode-se afirmar que vivemos um apartheid racial camuflado, encoberto, aquilo que muitos autores vêm denominando de mito da democracia racial (Munanga, 1999; Santos, 1997; Candau, 2002; Gonçalves, 2000; Rosemberg, 1996; Gomes, 2003, e outros).

Apesar da ênfase dada ao aspecto econômico, cujas razões já explicamos, assim como seu atravessamento racial, observa-se também pelas entrevistas realizadas com os sujeitos, que sua presença na universidade, ainda que indiretamente, contribuiu para o seu processo de afirmação enquanto identidade racial/étnica. Afirmo indiretamente porque muitos davam mais ênfase ao projeto e a sua comunidade do que ao acesso à universidade. Considerando que o projeto existiu em função do acesso à universidade, percebe-se que há uma contribuição, ainda que de forma não direta. Neste sentido destaco:

Meu curso não fala especificamente desta questão. Mas o projeto me ajudou, o projeto Negraeva me ajudou a ter conhecimento. Porque antes de entrar no projeto eu não tinha interesse em procurar e dentro do projeto não. A gente tinha reunião com o grupo de acadêmicos, a gente discutia sobre a questão racial, então era bom... Tinha um esclarecimento, trabalho de auto-estima com a gente. Isso foi muito bom. (Lúcia)

Algumas vezes esta importância para a construção da identidade cultural pode ser percebida por meio da prática de uma professora da universidade, militante do Movimento Negro:

Para mim ela foi um exemplo de luta, porque aquela mulher é muito determinada. Ela sabe o que quer (...). Eu muitas vezes não concordava com algumas coisas que ela falava porque quando você é adolescente você quer é curtir a vida. Só que hoje eu vejo que é certo... (Lia)

Outras vezes, questionando atitudes de professores que não percebiam suas atitudes/falas discriminatórias:

Às vezes eles faziam algumas colocações que eram pejorativas. Eu não deixava escapar. Eu cobrava. "Pô professor não é assim!" Questionava a posição dele e muitas vezes o professor se sentia intimidado pela maneira como eu me colocava na frente da sala, pela colocação que ele fazia sobre alguma reportagem ou por alguma expressão que ele usava que é muito comum. "Ah, porque neguinho se acha" (...). Por que ninguém fala assim? "Porque branquinho se acha!". Ninguém fala porque branquinho não é pejorativo, mas o neguinho é. (Ana)

Ainda, os efeitos na identidade cultural podem ser percebidos por meio do questionamento de colegas (brancos) de aula, que ao "branquearem" os negros pensavam que estavam fazendo um elogio, não percebendo a discriminação implícita que os motivava. Como explicita Sara:

A gente começava a discutir a questão do negro. Eu comecei a falar que sou negra. Sempre tinha aquelas pessoas que diziam: não você não é negra, você é morena. Negra é a fulana. Eu tinha que impor. Eu sou negra! Eu não vejo nenhum problema em ser negra. As pessoas é que criam obstáculos para as pessoas negras (...). Hoje em dia eles me respeitam e me vêem como negra.

Também o fato de estarem fazendo um curso superior é um elemento importante para a construção da identidade cultural, como se pode observar na fala da aluna Rosimeire: "Entrar na universidade fortalece muito a gente. A gente tem que mudar isso: que negra nasceu para ser empregada doméstica, para o trabalho braçal. A gente tem que lutar para conquistar o nosso espaço". De modo semelhante, Lúcia destaca: "Ajuda porque você tem um estudo. Você tem um conhecimento, você vai estar a par dos seus direitos (...). Você já é discriminado. Então se você não for preparada, vai ser pior ainda...". Sem contar que a presença de alunos negros acaba servindo de motivação para que outros também se sintam capazes: "Eu estou fazendo curso superior. Estou concluindo o meu curso. Sou uma das poucas negras que está fazendo. Então eu estou sendo uma força para mostrar para outras pessoas do meu bairro que isso é possível" (Lia).

Como vimos, vários são os efeitos que o acesso à universidade tem para os sujeitos que historicamente foram excluídos deste espaço. Os Estudos Culturais sustentam que as identidades são construídas na relação com os outros em contextos culturais e sociais: "A identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas (...). Somos nós que as fabricamos, no contexto de relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são criações sociais e culturais" (Silva, 2000a, p. 76). Assim, quando os sujeitos freqüentam o ambiente universitário, quando este ambiente passa a fazer parte do seu universo social e cultural, estes passam a ter mais força para reivindicar direitos, questionar atitudes discriminatórias, desconstruir o mito da democracia racial, construindo uma identidade cultural/racial/étnica de forma a se verem e serem vistos pelos outros como uma identidade legítima, que não pode ser usada para justificar a dominação e a exploração econômica, como se fez e se faz no Brasil desde os tempos da colonização.



Notas

1. Entenda-se, os sujeitos da cultura.

2. Como os dados do IBGE (2003) continuam evidenciando.

3. Observem-se os grandes embates suscitados pelas políticas que visam estabelecer cotas para negros, índios e estudantes da escola pública em universidades públicas federais.

4. Destaco a luta incansável dos movimentos negros que estão forçando a adoção de políticas públicas da diferença.

5. Políticas culturais entendidas como as lutas de poder em torno dos significados válidos, das identidades "legítimas", dos processos de significação e ressignificação inerentes a toda cultura.

6. A coordenadora cita o nome do professor.

7. Moreira (2001), ao analisar a produção científica sobre currículo e multiculturalismo no Brasil chama a atenção para a "secundarização da categoria classe social" (p. 72), entendendo que se trata de uma inquietação e motivo de preocupação, ainda mais por sermos um dos países mais desiguais do mundo.

8. A aluna está se referindo à Fundação Ford, que financiou o Projeto Negraeva e de fato esta ajuda financeira (um salário mínimo) foi só para o primeiro ano do curso, para todos os 17 integrantes.



Referências bibliográficas

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Identidade e alteridade
by Reciclagem de Artigos in

Maurício Tragtenberg: Identidade e alteridade
Antonio Ozaí da Silva

“Tolerar a existência do outro,
E permitir que ele seja diferente,
Ainda é muito pouco.
Quando se tolera,
Apenas se concede
E essa não é uma relação de igualdade,
Mas de superioridade de um sobre o outro.
Deveríamos criar uma relação entre as pessoas,
Da qual estivessem excluídas
A tolerância e a intolerância.”
(José Saramago)
“A fim de imaginarmos, de forma aproximadamente precisa, determinada pessoa, temos antes de mais nada de estudar a sua época, fase em que podemos até mesmo ignorá-la, para depois, a ela retornando, encontrar o maior agrado na sua comtemplação.”
(Carta de Goethe a Karl Friedrich Zettei)
“O que eu sou é o que me faz viver.”
(Shakespeare, Henrique III)
“Ante os fatos nem rir, nem chorar, mas compreender.”
(Baruch Espinosa)

“Só não há poder sobre os mortos”
(Walter Benjamin)


Introdução


Em Homens em Tempos Sombrios, Hannah Arendt descreve os estilos de elaboração biográfica. De um lado, temos a biografia própria dos grandes estadistas, que se tornou o gênero clássico:
“Extensa e meticulosamente documentada, densamente anotada e generosamente entremeada de citações, geralmente aparece em dois grandes volumes e conta mais, e mais vividamente, sobre o período histórico em questão do que todos os livros de história mais importantes.” (ARENDT, 1999: p.37)


É a biografia definitiva! Nela, o tempo histórico amalgama-se à vida do biografado: o resultado é a fusão completa da vida e do mundo. É o estilo inglês que retrata os ilustres personagens que marcaram épocas igualmente notáveis.
Como assinala Arendt, este estilo biográfico não é adequado àqueles cujo principal interesse está precisamente na sua história de vida, ou seja, em relação aos homens e mulheres que, embora geniais, não se encontram tão vinculados ao mundo. Nestes casos, a inserção no mundo, isto é, a história temporal, torna-se muito mais o “inevitável pano de fundo” que realça a vida do biografado. Aqui, o que dá sentido e significado à biografia é principalmente as obras: os “artefatos” que os biografados “acrescentaram ao mundo.” (id.)

Arendt questiona se a biografia detalhista, essencialmente técnica, consegue fornecer aos leitores um quadro fiel da real dimensão humana do biografado. Sua crítica atinge mesmo o âmago do método inscrito no estilo inglês de biografar. Para ela, “ver a história sob a luz de teses impessoais apenas resulta na promoção falsa à respeitabilidade e uma distorção mais sutil dos eventos.” (id)
Os exemplos das biografias de Stalin e Hitler, elaboradas, respectivamente, por Isaac Deutcher e Alan Bullock , ilustram esta limitação: quanto mais rica em detalhes técnicos, fundamentados por uma certa neutralidade axiológica, mas compromete-se a apreensão do essencial para a compreensão da totalidade humana e das suas obras. Se o leitor não intenta perder-se no detalhismo frio e impessoal, isto é, se quer ver "os eventos e as pessoas em sua proporção correta”, tem que recorrer “às biografias menos documentadas e factualmente incompletas.” (id)
A leitura de Hannah Arendt nos faz pensar sobre a tarefa hercúlea de debruçar-se sobre o registro historiográfico dos indivíduos. Passamos a ter a exata dimensão do seu significado e dos desafios. Se enveredarmos pelo gênero clássico, seremos capazes de captar a dimensão da totalidade humana do biografado? Se o detalhismo técnico do estilo inglês resulta na racionalização fria e impessoal dos fatos e da vida, como biografar sem cair no subjetivismo apologético e ou condenatório do biografado? Neste caso, é possível ser axiologicamente neutro?
Estamos convencidos de que a pesquisa e a elaboração textual estão eivadas de subjetividade. Contudo, também nos convencemos que a relação entre a objetividade e a subjetividade é dialética: uma está relacionada à outra. O que conseguirmos fazer será a síntese que expressa como realmente trabalhamos as contradições.
Nosso objetivo é traçar um esboço biográfico sobre Maurício Tragtenberg. Portanto, se abandonamos de antemão qualquer perspectiva de escrever uma biografia definitiva, ao estilo inglês, também temos claro que ficaremos muito aquém da biografia no sentido exato da palavra, mesmo que menos documentada e factualmente incompleta.
Oxalá, este primeiro passo ilumine a senda que trilhamos, no sentido oposto ao que Hannah Arendt denominou de gênero clássico biográfico! Oxalá nossa síntese não peque pelo exagero do tecnicismo frio e aparentemente impessoal, nem também pelo apologismo e condenações a priori! Só então faremos justiça aos esforços dos nossos mestres em compartilhar seus tesouros conosco (Pois que é o conhecimento senão o melhor tesouro que podemos encontrar? Quando nos apossamos dele, ninguém pode roubar-nos. Sua dádiva está justamente em que não nos custa dividí-lo. Ele nunca será só nosso!).!

Definindo identidade, alteridade e singularidade
Segundo Laing (1986: p.78), “não podemos fazer o relato fiel de "uma pessoa" sem falar do seu relacionamento com os outros.” A identidade é definida pela relação do indivíduo na relação com outros indivíduos, isto é, cada indivíduo se completa e se efetiva no relacionamento com os que estão à usa volta, em seu convívio. É na relação entre o EU e o OUTRO que se constrói a identidade do EU.
Mas não estamos tratando de indivíduos abstratos isolados do contexto social. Na relação entre os indivíduos há uma estrutura econômica que interage e influencia a efetivação da identidade. Parece-nos que Guattari, ao deslocar o foco da sua análise para a micropolítica, consegue, a exemplo de Foucault, oferece uma contribuição importante para a compreensão das relações entre os indivíduos e as estruturas sócio-econômicas.
Não esqueçamos que Guattari diferencia identidade e singularidade:
“A singularidade é um conceito existencial; já a identidade é um conceito de referenciarão, de circunscrição da realidade a quadros de referência, quadros estes que podem ser imaginários.” (GUATARRI & ROLNIK, 1986: p.68)
Enquanto a identidade diz respeito ao reconhecimento, a singularidade articula todos os elementos que costumeiramente constatamos quando definimos a identidade do indivíduo, isto é, como nos sentimos, nossos desejos, nossas atitudes em determinados contextos, em suma, tudo o que diz respeito ao nosso ego.
A singularidade, no sentido de Guattari, não é apenas diferente: é mais ampla. Se afirmo, “sou fulano e estou aqui”, apenas me identifico. A minha singularidade é muito mais complexa do que a afirmação de quem sou eu; ela resulta do cruzamento das várias formas do meu SER em relação às pessoas e às estruturas que me cercam.
Nas palavras de Guattari,
“a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável.” (id, pp. 68-69)
Neste sentido, a identidade, e é interessante observar, está relacionada a processos de identificação, desde um simples “meu nome é tal” até a sujeição a procedimentos policias, burocráticos, documentais etc.
Pensando em termos biográficos, a micropolítica de Guattari complexifica a tarefa do biógrafo. Aqui, trata-se de ir além da apreensão da identidade: é preciso assimilar a singularidade, isto é, as várias formas de ser do sujeito cognoscível. Por outro lado, suas formulações são um convite à reflexão crítica sobre a complexidade do real e do lugar da subjetividade neste. Esta refere-se tanto à dimensão sócio-econômica, quanto à dimensão das relações entre os indivíduos, ou seja, diz respeito a processos de singularização marcados e consubstanciados na subjetividade capitalista.
Este aspecto é essencial: além de considerarmos o biografado em sua relação com os indivíduos que o cercam (cuja relação, retomemos Laing, determina sua identidade), temos ainda que considerá-lo em relação às instituições, cujo caráter capitalista permeia sua singularidade e determina a sua subjetividade. Com efeito, a subjetividade burguesa envolve todos os aspectos da vida social em suas esferas econômicas, sociológicas, antropológicas, privada e pública, individual e coletiva.
Até que ponto conseguimos escapar às garras da subjetividade capitalista arraigada em todos os poros do nosso ser? Se o inimigo se infiltra em todos os interstícios da sociedade até que ponto a crítica ao status quo não se resume à retórica? Qual a exata medida da nossa coerência se escondemos, no e pelo discurso pretensamente revolucionário, o mais desvairado e pervertido desejo de dominar, de controlar o poder, de submeter as coisas e as pessoas aos desígnios burocráticos e particularistas? Em suma, é possível escapar à subjetividade capitalista?
São perguntas necessárias para delimitar claramente o ser contraditório que somos. Se somos assim, justamente pela humanidade que possuímos (pois só os deuses não erram; mesmo assim, temos divindades que representam o bem e o mal), e temos clareza que esta característica é própria do ser humano, então, o risco da apologia ou do maniqueísmo é menor.
Esta reflexão teórica permite-nos relacionar não apenas o indivíduo e as instituições que compõem a estrutura sócio-econômica da sociedade, mas também pensar o micro e sua relação com o macro. Se, como afirma ele, “a questão da micropolítica é a de como reproduzimos (ou não) os modos de subjetividade capitalista”, torna-se possível apreender as diversas formas de ser do indivíduo tanto no nível macro quanto no micro. (id)
Somos determinados pela relação com o meio: transformamos e somos transformados através desta interação. Assim, vemos a relação entre o individuo e a as instituições de forma dialética. É verdade que a subjetividade capitalista, (em outras palavras, seus valores, ideologia etc.), submete nossa singularidade e influencia nossa práxis. No entanto, não somos apenas reflexo do meio. A nossa capacidade em interagir com o meio, também nos dá as condições não apenas de compreendê-lo criticamente, mas também a possibilidade de nos libertarmos das suas amarras e transformá-lo.
É certo que esse poder é relativo: não escapamos de forma absoluta às artimanhas do inimigo. De um ponto de vista da subjetividade, somos todos burgueses: pensamos e agimos como tal; estamos imbuídos dos valores ideológicos que predominam em nossa sociedade.
Retomemos o conceito de identidade. Segundo Laing, “a primeira identidade social da pessoa lhe é conferida pelos demais. Aprendemos a ser quem nos dizem que somos.” (LAING, 1986: p.90). Se concordarmos com Laing, podemos, então, nos perguntar: quem é o OUTRO que dialoga com Tragtenberg e, nesta relação, determina sua identidade?
Mas não parece absurdo determinar o EU pelo que o OUTRO pensa dele? De fato, nossas ações são determinadas na relação com os outros. Desempenhamos papéis diferenciados de acordo com a influência daqueles com os quais nos relacionamos. Nossa auto-identidade é fortemente influenciada pelo que pensamos sobre o que o outro pensa sobre nós. É só na relação com o outro que pode ocorrer a complementaridade.
Porém, esta complementaridade nem sempre é genuína. Ela pode ser negativa, no sentido da anulação do EU em função do OUTRO. Como escreve Laing, “o OUTRO, por intermédio de suas ações, pode impor ao self uma identidade indesejada.” (id., p.78)
Neste sentido, só podemos conhecer plenamente o EU, neste caso, Maurício Tragtenberg, se conhecermos o que os outros pensavam e pensam dele. Mas podemos nos referir a um Tragtenberg (cuja identidade é dada pela relação com os outros) ou estamos diante de uma singularidade que sintetiza o cruzamento de vários Tragtenberg (Guattari)?
A questão complica-se ainda mais se considerarmos alguns elementos que caracterizam a vida e obra de Tragtenberg. A título de exemplo, destaquemos uma característica: o fato dele pertencer à etnia judaica. Isto o diferencia dos demais no sentido que lhe confere uma alteridade?
A resposta de Guattari, se bem o compreendemos, é negativa. Identificar as pessoas pelas características que as diferenciam é como colocá-las em oposição aos demais. Terminamos por construir dualidades que se excluem. Assim, definir os indivíduos pela cor, opção sexual, etnia etc., significa afirmar identidades não necessariamente complementares (Laing) ou singulares (Guattari).
Em situações como esta, Guattari considera que o termo mais adequado é “processo de singularização”. É mais apropriado nos referirmos às singularidades, “no sentido de que o que há são processos diferentes.” (GUATTARI & ROLNIK, 1986: p. 79) Afirmar as singularidades está relacionado à idéia de um devir, ou seja, “à possibilidade ou não de um processo se singularizar.” (id., p.74)
A afirmação étnica, de gênero, opção sexual etc., não é, para Guattari, “uma questão de identidade cultural, de retorno ao idêntico”, mas sim uma “problemática da multiplicidade e da pluralidade.” Só pelo processo de singularização que é possível às chamadas minorias romperem com as “estratificações dominantes”:
“Toda vez que uma problemática da identidade ou do reconhecimento aparece em determinado lugar, no mínimo estamos diante de uma ameaça de bloqueio e de paralisação do processo.” (id.)
A micropolítica seria uma forma capaz de evitar este bloqueio e de impedir que a afirmação da singularidade, sob determinadas circunstâncias, resulte na “reificação de um devir individual.” Esta forma singular de conceber a política, a partir das micro-relações, sem descartar a esfera macro-estrutural, consiste precisamente em “criar um agenciamento que permita, ao contrário, que esses processos (de singularização) se apóiem uns aos outros, de modo a intensificar-se.” (id., p.79
Isto, nas palavras esclarecedoras de Luiz Mott, e concordando com Guattari, significa reconhecer as pessoas pela qualidade que nos iguala: o fato de sermos humanos. Como escreve Mott:
“O que nós queremos é que as pessoas não se vejam como negros, não se vejam como homossexuais, não se vejam como mulheres; que as pessoas se vejam como pessoas humanas.” (Id., p. 76)
Contudo, sejamos francos: por mais que reconheçamos este ideal igualitário, a problemática se mantém. Que é ser negro, judeu, mulher ou homossexual em sociedades como a nossa? O negro reconhece-se como negro, o judeu enquanto tal e assim sucessivamente. A questão é: se eu não vejo o outro como uma singularidade, mas simplesmente como um membro da espécie humana, isto evita que ele se veja como uma singularidade? Por que não reconhecer que o OUTRO é uma alteridade singular que se diferencia de mim por ‘n’ características culturais? Por acaso isto impede que o veja como um igual no sentido de que pertencemos à mesma humanidade?
Na vida real, as respostas nem sempre são positivas. Goffman (1982) nos mostra como a sociedade estabelece meios que categorizam as pessoas de acordo com atributos que ela reconhece válidos para que sejamos identificados como normais. Se temos alguma característica considerada incomum ou anti-natural, então imputam-nos um estigma.
O negro, o judeu, o pobre, mas também o homossexual, a prostituta, o que tem deficiência corporal etc., sabem e sentem na carne o que é ser estigmatizado. Com efeito, a palavra estigma se origina entre os gregos na antiguidade. O povo que nos legou a filosofia e uma idéia de política democrática, usava este termo quando se referia
“a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos.” (p. 11)
Na Era Cristã, o estigma se expressa através de sinais corporais que indicam que aquele indivíduo tem a graça divina ou simplesmente para identificar um distúrbio físico. É verdade que a anomalia corporal, ou uma simples característica que categoriza o indivíduo entre os que não são normais, induz ao estigma. Mas, como escreve Goffman, o termo “é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal.”(Id.)
O termo estigma indica um atributo depreciativo, que pode ser visível ou imputado ao outro pelos que se consideram ‘normais’. Em casos como raça, religião, postura política-ideológica, classe social etc, o estigma expressa uma postura não apenas de animosidade, mas também percepção ideológica valorativa de quem se considera superior ou normal. O outro é categorizado como não natural, fora do comum.
O estigma também pode ser uma defesa assumida pelo estigmatizado. Aqui ele adota a postura de vítima e até procura tirar vantagens desta situação. O estigma funciona como um elemento subjetivo que o protege e justificava para os seus fracassos pessoais, determinados não necessariamente pela condição pela qual lhe estigmatizam.
Outros adotam o estigma. Então, assumem-se como normais: os demais é que não seriam plenamente humanos. Para Goffman,
“esta possibilidade é celebrada em lendas exemplares sobre os menonistas, os ciganos, os canalhas impunes e os judeus ortodoxos.” (Id., p.16)
Há ainda, os conformados: os que vêem a situação que gera o estigma como uma espécie de benção. Estes procuram aprender com a própria desgraça e usar este aprendizado de forma a compreender os outros e ajudá-los. É uma resposta sentimental fundada na experiência do sofrimento.
Em muitos casos, a tendência é que os estigmatizados agrupem-se, o que lhes dá o sentimento de pertencimento a uma comunidade de iguais. Os iguais defendem-se e estabelecem formas de reação aos que estigmatizam-nos. Por compartilharem o estigma, apóiam-se uns aos outros.
Mas, há também a possibilidade deste apoio vir dos informados, que na definição de Goffman, são:
“Os que são normais mas cuja situação especial levou a privar intimamente da vida secreta do indivíduo estigmatizado e a simpatizar com ela, e que gozam, ao mesmo tempo, de uma certa aceitação, uma certa pertinência cortês ao clã. Os “informados” são os homens marginais diante dos quais o indivíduo que tem defeito não precisa se envergonhar nem se autocontrolar, porque sabe que será considerado como uma pessoa comum.” (Id., p.37)

Os informados são as pessoas que trabalham diretamente com os estigmatizados: enfermeiras, psicólogos, funcionários treinados para agir diante de determinados públicos etc. Um segundo grupo de informados é composto por aqueles que se relacionam intimamente com o que sofre o estigma: seus amigos mais próximos, sua família etc. Nestes casos, compartilham o estigma.
O informado aparece como o normal na relação, ainda que compartilhe o estigma. O problema é que esta é uma relação muito complexa, tanto do ponto de vista do normal quanto do estigmatizado. O primeiro, poderá não conseguir superar a difícil tarefa de ver o outro como uma pessoa tão comum quanto ele, ou seja, de forma que o estigma não lhe tire o caráter de humano e o diferencie do gênero. Por outro lado, ao compartilhar o estigma, no caso da família e dos amigos mais próximos, pode não suportar as conseqüências de também ser estigmatizado.
Quem sofre o estigma também terá uma tarefa difícil. Como evitar o isolamento auto-protetor? Como não adotar uma postura agressiva e sectária diante do outro que lhe estigmatiza? Como lembra Goffman:
“O estigmatizado pode, também, questionar abertamente a desaprovação semi-oculta com a qual ele é tratado pelos normais, e esperar até apanhar o “informado”, que se autodesignou como tal, “em falta”, isto é, continuar a examinar as ações e as palavras dos outros até obter um sinal fugaz de que as suas demonstrações de aceitação do estigmatizado são apenas a aparência.” (id., p. 125)
Toda vez que a possibilidade do estigma se faz presente, isto é, quando o indivíduo encontra-se numa situação na qual sua aceitação social não é plena, a relação de alteridade é complexa. Pode ocorrer, por exemplo, que não lhe imputemos o estigma. Mas não nos iludamos: o signo que tal pessoa incorpora, como sua condição étnica, induz à estigmatizaçao social, ainda que na relação individual isto não ocorra.
Quando ocorre o estigma, temos um paradoxo: ao mesmo tempo que estigmatizamos, exigimos do estigmatizado que se comporte de tal maneira que demonstre que o atributo que gera o estigma não significa uma carga pesada que ele carrega, nem que é diferente de nós. Por outro lado, impomos um distanciamento que assegure que isto é verdadeiro:
“Em outras palavras, ele é aconselhado a corresponder naturalmente, aceitando com naturalidade si mesmo e aos outros, uma aceitação de si mesmo que nós fomos os primeiros a lhe dar. Assim, permite-se que uma aceitação-fantasma forneça a base para uma normalidade-fantasma.” (Id., p.133)
Em suma, por mais que eu como indivíduo normal ou informado recuse a ver no outro um ser cuja humanidade se diferencie por algum atributo qualquer, isto não anula o estigma. Embora o estigma manifeste-se em relações intra-indivíduos, marcados pelo preconceito e descrédito em relação ao outro, ele insere-se num contexto histórico-social. Segundo Goffman:
“A situação especial do estigmatizado é que a sociedade lhe diz que ele é um membro do grupo mais amplo, o que significa que ele é um ser humano normal, mas também que ele é, até certo ponto, “diferente”, e que seria absurdo negar essa diferença. A diferença em si, deriva da sociedade, porque, em geral, antes que uma diferença seja importante ela deve ser coletivamente conceptualizada pela sociedade como um todo.” (id., p.134)
Ainda que o fato de uma pessoa ser negra ou judeu não tenha a menor importância em si, no sentido que o vemos como um ser humano igual, o estigma já está socialmente dado e não podemos desconsiderá-lo. O mesmo vale para o estigmatizado. A alteridade intra e extra-grupo é uma componente da sua identidade.
Em geral, adotamos estigmas. Assim, alienamos o humano do seu SER e definimo-lo pela identidade/singularidade. Se o estigma manifesta-se nas relações entre os indivíduos, resta-nos analisar a relação entre os indivíduos e os grupos. Como os indivíduos reagem ao grupo e vice-versa? Há uma interação entre ambas as esferas? O indivíduo consegue manter sua autonomia em relação ao grupo ou é submetido a este?
Goffman nos ajuda a responder estas questões. Seu ponto de partida é o conceito de face:
“O termo face pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reclama para si mesma através daquilo que os outros presumem ser a linha por ela tomada durante um contato específico. Face é uma imagem do self delineada em termos de atributos sociais aprovados.” (GOFFMAN, 1980: p. 76)
Vivemos como se fôssemos atores, cujo palco é a vida. Nosso objetivo é obter efeito sobre os outros, resguardar-se nas relações, controlar o ambiente, não colocar a face em risco. Tendemos à construção de imagens (papéis) que se adaptem aos diferentes contextos. Na esfera pública representamos vários papéis conforme as necessidades circunstanciais. Na esfera privada é como se fôssemos outra pessoa, outro EU. Em ambas dissimulamos. O indivíduo é cindido de acordo com as esferas da sua atuação.
Em outras palavras, não podemos ser o EU genuíno sob pena de ser ridicularizado ou cair em desgraça no grupo, ou seja, de perder a face. Há certas regras e procedimentos que devemos seguir. Isto é, para salvar sua face você deve se adequar à formalidade e informalidade do grupo. Na ânsia da segurança, nos termos de Goffman, salvar a face, representamos o tempo todo.
Essa dinâmica não dependem apenas da vontade individual, resulta de determinações sociais:
“A face dos outros e a própria face são construtos da mesma ordem; são regras do grupo e a definição da situação que determinam a quantidade de sentimento ligado à face e como esse sentimento deve ser distribuído entre as faces envolvidas.” (Id., pp.76-77)
Se, como afirma Goffman, estamos submetidos à coerção do grupo, que ocorre quando nos rebelamos ou não nos identificamos com o grupo, isto é, não obedecemos suas regras? No extremo, corremos o risco do isolamento, da exclusão do grupo. É simples: o grupo também tem determinadas expectativas em relação aos seus membros e, caso esses não correspondam, descarta-os. A vida está repleta de exemplos.
Os atributos do grupo e sua relação com a face nos transformam em nossos próprios carcereiros. “Trata-se de uma coerção social fundamental mesmo que todo homem goste de sua cela”, afirma Goffman. (Id., p.81) Parece-nos que o fundamento para o auto-aprisionamento em torno de uma imagem determinada pelo grupo e pela necessidade de salvar a face está na própria estrutura da sociedade cada vez mais competitiva. Submeter-se ao grupo é essencial para a sobrevivência e/ou ascensão social. Talvez esta seja a melhor forma de definir o que Goffman chama de face positiva.
Ao longo da sua exposição, Goffman deixa subentendida a idéia de que, ainda que tenhamos diferenças culturais, somos todos iguais em todos os lugares. Somos iguais, sobretudo, porque temos a mesma natureza humana universal Se somos tão iguais, então por que também nos igualamos na necessidade de dissimular, de adotar e representar papéis conforme as circunstâncias e as exigências do grupo? Isto não seria uma deformação do indivíduo? Afinal, como explicar os preconceitos, a submissão dos indivíduos à coerção do grupo se somos todos membros de uma mesma natureza humana universal?
O fato de sermos negros ou não, feminino ou masculino, heterossexual ou homossexual, judeus ou cristãos, não deveria ter tanto peso nas relações entre os indivíduos e entre estes e os grupos sociais. Mas tem! Não nos iludamos.
Imaginemos a relação de Tragtenberg com o judaísmo: o que significa ser judeu nas suas condições? Quais são estas condições? Ele se identifica com o grupo? De que forma? Pela assimilação ou através de procedimentos dissimuladores? Parece-nos que se isto não é determinante, também não é descartável. No entanto, no momento não temos respostas, só perguntas.
Nesta busca, Goffman nos aponta um caminho. Para ele:
“Se as pessoas têm uma natureza humana universal, não é a elas que se deve observar para explicá-la. Deve-se , em vez disso, observar o fato de que qualquer sociedade, se quiser ser uma sociedade, deve mobilizar seus membros como participantes auto-reguladores em encontros sociais. O ritual é uma forma através da qual se pode mobilizar o indivíduo para este propósito. Ensina-se o indivíduo a ser perceptivo, a ter seus sentimentos ligados ao self através da face, a ter orgulho, honra e dignidade, consideração, tato e uma certa aplomb. Estes são alguns dos elementos de comportamento que devem ser embutidos na pessoa, caso se queira fazer qualquer uso da mesma como um integrante, e são esses elementos que as pessoas, em parte, se referem quando falam de uma natureza humana universal”. (p. 107)
É uma resposta possível que coloca novas perguntas e indica novos caminhos. Como pesquisadores somos instigados a considerar, sem preconceitos, a contribuição teórica dos autores, confrontando-os e em relação a outros autores, construindo, assim, nossa síntese. Eles nos oferecem os meios teóricos que nos permitem uma primeira aproximação com as questões que nos colocamos. Façamos um esforço para analisa-las a partir dos elementos biográficos que temos.

As “Universidades” de Maurício Tragtenberg: um esboço biográfico
Tragtenberg, nasceu em 04 de novembro de 1929. Sua biografia, como ele explicita em seu Memorial [1] , tem uma dimensão histórica que o antecede:
“Minha biografia começa no interior do Estado do Rio Grande do Sul, onde meus avós aportaram na qualidade de camponeses pequenos proprietários, fugindo dos progroms, cultivando como unidade familiar uma agricultura de subsistência onde o excedente era vendido no mercado, em Erebango, que depois tornou-se Erexim e finalmente Getúlio Vargas.” (Memorial, p. 08)
Eis, em poucas palavras, a dimensão biográfica de Tragtenberg: seu pertencimento à descendência judaica liga-o à tradição cultural deste povo, sua história, caminhos e descaminhos. Povo perseguido desde os tempos de Moisés, os judeus foram constantemente forçados a deslocamentos territoriais sucessivos. Desde então, vagam pelo mundo em busca do porto seguro que lhes dê a oportunidade de, simplesmente, viverem em segurança e em paz.
É esta dinâmica que determina o fato de Tragtenberg iniciar sua biografia com os avós. Estes, emigraram para o Brasil para escapar às perseguições contra os judeus na Rússia Czarista. Aqui começa uma trajetória que marcará sua vida.
A ânsia de emigrar que tomou conta do povo judeu neste período, é determinada pela necessidade de sobrevivência diante da intensificação da violência sob o governo de Alexandre III. Os judeus russos, em seu êxodo, dirigiram-se principalmente para os Estados Unidos da América [2] ; uma pequena parte, emigrou para o Canadá, Inglaterra, África do sul e Austrália; foram poucos os que vieram para o Brasil e Argentina.
A história da imigração rural dos judeus para o Brasil, no período republicano [3] , começou com a iniciativa do Barão Maurício de Hirsch, francês de origem judaica, banqueiro em Bruxelas. Com a idéia de um projeto que ajudasse os judeus a se transferirem para terras mais pacíficas, imunes à intolerância religiosa ou étnica, o Barão de Hirsch criou, em 1891, uma organização para a instalação de colônias agrícolas em diversos países: a Jewish Colonization Association (conhecida como JCA).
Foi esta organização que financiou a emigração dos judeus russos para o Brasil e Argentina. O Barão Hirsch teve o apoio do capital de banqueiros e filantropos judeus como Lord Rothschild, Barão Goldsmid, Ernest J. Cassel, F. D. Mocatta, D. H. Goldschmidt, Salomão Reinach, Benjamin L. Cohen e o Barão de Philippson.
Para estabelecer as colônias agrícolas, a JCA adquiriu, em 1903, uma área de 5.767 hectares em Santa Maria, que foi a primeira colônia judaica no Brasil. Essa colônia foi chamada de Philippson, em homenagem a Franz Philippson, vice-diretor da JCA e presidente da Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil, que atuava no Rio Grande do Sul, . Em Philippson, a partir de 1904, instalaram-se os primeiros imigrantes judeus, oriundos da Bessarábia – região russa entre os rios Pruth e Dniester, banhada pelo mar Negro.
Na nova terra, os imigrantes receberam lotes de 25 a 30 hectares, com uma residência, instrumentos agrícolas, duas juntas de bois, duas vacas, carroça, cavalo e sementes, a um preço de cerca de cinco contos de réis, a serem pagos em prazos de 10 a 15 anos.
Pouco a pouco, chegaram outros imigrantes e a área territorial, com as novas aquisições da JCA, se estendeu de Philippson a Erebango a e Quatro Irmãos, regiões localizadas no Alto Uruguai, próximos a Marcelino Ramos, na fronteira com Santa Catarina.
Quem eram estas pessoas que chegavam ao novo mundo munidos de volumosa bagagem (basicamente roupas e livros religiosos), de dívidas a saldar com a JCA e repletos de esperanças e sonhos? Era gente simples: pequenos camponeses com profundos sentimento religiosos e apegados à tradição. São corpos que foram expostos a uma viagem exaustiva, desconfortante e miserável, amontoados na terceira classe dos navios que, após outra extenuante viagem por terra depois, transportados em caminhões do exército, eram "despejados nas matas de Erebango.” (Id., p.08) Corpos exaustos, mas plenos de sonhos e esperanças.
Schweidson, filho de imigrantes judeus, também oriundos da Rússia, e que colonizaram Philipson, relata esta saga: os sonhos, as lutas, e as decepções. Em seu livro autobiográfico, Judeus de bombachas e Chimarrão, podemos percorrer todo o trajeto percorrido pelo imigrante judeu russo: da seleção pela qual passava na localidade de origem, à viagem, chegada, as primeiras impressões e os primeiros tempos; tempos duros onde a religiosidade cumpria um papel importante para suporta-los com mais alegria e esperança.
Observamos em seu depoimento que as condições nas quais os camponeses imigrantes tinham que viver sua nova vida chegavam a ser piores do que as que tinham na Rússia:
“O primeiro contato com a realidade da sonhada terra da promissão foi duríssimo. Sentiram-se os imigrantes como que esmagados pelo imenso vazio. Decepcionados com o extremo primitivismo dos casebres, contrastando com o relativo conforto das antigas habitações na Rússia. (...) Das primeiras impressões a mais desagradável, para não dizer traumatizante, proveio do chão, ainda mole e úmido. Transmitia calafrios e angústias. Um chocante augúrio de miséria e de pressentimentos lúgubres.” (SCHWEIDSON, 1985: p.18)
Esta dura realidade era compensada pelo convívio, as atividades sociais-religiosas e pela hospitalidade dos demais habitantes da região, “gente destituída de qualquer preconceito”:
“A designação judeu ou russo ali jamais foi aplicada com sentido pejorativo ou de provocação. Nascido em Filipson, convivi desde a mais tenra idade com meninos judeus e cristãos. Nas constantes brincadeiras ou brigas, jamais ouvi uma palavra emanada de preconceitos. Nem mesmo nas disputadíssimas corridas de cavalo, freqüentemente resolvidas entre berros e tapas, nunca percebi laivos de malquerença racial ou religiosa. Este fenômeno abjeto, só vim a conhecê-lo, muito, muito mais tarde. Depois que o nazismo montou a sua formidável máquina de mentiras, redifundidas pelas sucursais integralistas.” (id., pp. 16 e 26) [4]
Em suas memórias autobiográficas, Tragtenberg faz breves comentários sobre as condições de vida dos colonos de Erebango. Supomos, no entanto, pelas características da imigração e até mesmo pelo fato de serem regiões territorialmente próximas, que os relatos de Schweidson guardam similitudes com a realidade dos judeus em Erebango.
Tragtenberg realça os vínculos ucranianos dos colonos e enfatiza a característica peculiar destes povoamentos: a base econômica fundada na unidade produtiva familiar. Em entrevista concedida, à pesquisadora e socióloga Carmen Lúcia Evangelho Lopes, do Centro de Memória Sindical, realizada em setembro de 1983, publicada postumamente em livro organizado pela Professora Sonia Alem Marrach, da Unesp, Campus de Marília, Tragtenberg, num dos raros momentos em que se permitiu falar sobre si mesmo, resgata suas memórias e descreve-nos suas origens:
“Os meus avós desenvolviam uma agricultura familiar. A família era uma unidade produtiva. E o interessante é o fato de desenvolverem esse tipo de agricultura e não se dedicarem ao comércio que, em geral, é a ocupação especializada dentro do grupo judaico. Isso teve implicações importantes, no sentido de que eram muito ligados à terra enquanto propriedade; davam à terra um valor afetivo e profundamente religioso. Uma coisa que me lembro até hoje é que quando eu era menino, o meu avô levantava toda manhã e perguntava: “O Messias já chegou?” Logicamente respondia que não.” (TRAGTENBERG, 1999: p.11)
Ao enfatizar esta procedência, podemos observar as primeiras influências que moldaram sua identidade. Como vimos em Laing, a identidade forma-se numa relação de alteridade. Podemos traduzir este conceito por minhas universidades, [5] termo muito utilizado por Tragtenberg sempre que se refere aos que influíram em sua formação política-intelectual.
As primeiras universidades de Tragtenberg são justamente as experiências vividas ainda na infância. O meio rural, a cultura judaica, a literatura russa, principalmente Tolstoi, e as influências política-ideológicas da revolução maknovista na Ucrânia [6] . Em sua biblioteca, os colonos tinham obras de Bakunin, Kropotkine, Malatesta, de historiadores do anarquismo e outros autores como Emma Goldman e Nestor Makno.
Pelo depoimento de Tragtenberg podemos observar que este cabedal cultural constituía parte do cotidiano dos colonos de Erebango. Estes tinham contato com as grandes idéias que agitavam o mundo e culminaram com a Revolução Russa “Segundo meus pais toda esta problemática era discutida pelos meus avós, com a audiência respeitosa destes”, registra. (Memorial, p. 10)
As referências tragtenberianas são os ideais maknovistas, manifestados na literatura e discussão sobre a realidade ucraniana diante da Revolução Bolchevique de 1917. Este elemento aparece em sua descrição sobre os primeiros desafios dos colonos que, diante da natureza virgem, “começaram uma experiência fundada no apoio mútuo e na solidariedade, fundados na experiência da revolução maknovista na Ucrânia, destruída pelo bolchevismo, em 1918.” (Id., p. 09; grifos no original)
A divisão do trabalho e dos produtos entre os colonos expressa o fator solidário observado por Tragtenberg:
“Os mais hábeis cumpriam inúmeros papéis, na agricultura, no ensino, na assistência aos doentes e no sepultamento dos mortos. Cultivava-se a terra, plantava-se e colhia-se distribuindo a cada família os gêneros, conforme o seu tamanho, se maior ou menor. As famílias cooperavam nos trabalhos de desmatamento, construção de barracões, abertura de valos e caminhos.” (id.)
Em outros trechos do seu relato, Tragtenberg mantém a linha de raciocínio, sempre enfatizando os fatores que exprimem uma concepção pedagógica libertária. Assim lemos:
“Os camponeses de Erebango, ajudados pela imprensa libertária aprimoraram o senso coletivo de vida e trabalho, aprendendo uns com os outros. Todos eram alunos e professores, e aprendiam ao mesmo tempo os segredos do cultivo da terra. À luz de vela, à noite, aprendiam e ensinavam português, espanhol, russo e esperanto.” (id.)
Tragtenberg frisa que estes colonos liam vários autores anarquistas e os clássicos da literatura russa. Esta influência seria concretizada na conquista de “auto-suficiência em alimentos” e na elevação e aperfeiçoamento educacional e “auto-aplicação dos princípios anarquistas no quotidiano de suas vidas.” (id., pp. 09-10)
Nestes relatos temos a fala do adulto Tragtenberg analisando sua vida retrospectivamente. É um adulto já calejado pelo tempo e com sua formação pedagógica, teórica-política construída e consolidada ao longo de toda uma vida. Como toda análise a posteriori, permeiam-se elementos interpretativos com os fatores da formação intelectual e política, além de contar com uma dose de confiança na memória.
Os fatos históricos precisam ser reconstruídos e analisados em seus aspectos pormenores, buscando-se a conexão entre eles. Esta é uma tarefa ainda por ser feita. É difícil definir até que ponto esta experiência influiu sobre o menino Tragtenberg.
De qualquer forma, este menino cresce neste ambiente, interagindo com ele e construindo sua subjetividade. É nesta realidade rural que Tragtenberg conhece as primeiras letras, estudando numa escola pública que funcionava num galpão:
“Entre arreios, cheiro de alfafa e um quadro negro, tive meu primeiro contato com o ler; escrever e contar.” (Id., p. 10)
Ninguém nasce libertário. Metaforicamente, podemos imaginar a vida de uma pessoa como o receptáculo de diversos afluentes, onde mesclam-se águas de várias origens, expressão das diversas influências geradas pela nossas universidades. Somos a síntese desta mistura.
O menino Tragtenberg que descobre o mundo pela leitura e educação teria outras universidades. Desintegrada a unidade familiar produtiva, inicia-se um novo estágio na vida de Tragtenberg: muda-se para Porto Alegre. Na capital gaúcha, em pleno Estado Novo, instala-se no Bomfim, gueto judeu retratado de forma singular na obra de Moacyr Scliar. [7]
Outros fatores explicam a mudança para a capital gaúcha: a má escolha da região quanto à fertilidade e os recursos da terra; as conseqüências da Revolução Federalista, cujas tropas em combate, tanto Chimangos quanto Maragatos, atacavam os camponeses, expropriando-os e matando suas criações (o que continuou mesmo depois de terminada a guerra). A decepção com as colheitas e a insegurança, levaram os colonos a se mudarem para Porto Alegre e a se envolverem com outras atividades.
Outro fator a considerar foi a preocupação com a educação dos filhos. Nas colônias só havia ensino primário, e os imigrantes tinham que enviar seus filhos para estudar nas cidades. Isto gerava um problema que afetava muitos: a necessidade de sustentá-los. Em pouco tempo, a capital gaúcha desenvolveu uma significativa comunidade judaica, considerada a terceira do país.
Com a ida para Porto Alegre, inicia-se o que Tragtenberg chamou de politização precoce. Leiamos o seu relato:
“Lembro-me que houve um dia “sem aulas”. Isto se deveu à visita que Plínio Salgado fez a Porto Alegre. Na frente do grupo escolar havia um posto de distribuição de publicações de Plínio Salgado e sobre o integralismo. A condição de “judeu”, numa sociedade nacional mais ampla, leva você a uma “politização precoce”.
Continua:
"Isso porque a visita de Plínio Salgado era sentida no bairro judeu como a visita de um anti-semita que preparara futuros progroms, iguais aos vividos na Rússia, daí o temor e os comentários terem se espalhado pelo bairro.” (id., p.11)
Interessante observar que Tragtenberg usa o termo judeu entre aspas. Como vemos, ele não escapa ao estigma étnico. Não há como negar que sua descendência judaica influi na formação da sua identidade. O problema a definir é a sua extensão. Como ele convive com esta situação? Como se vê enquanto judeu? Qual o peso que isto tem em sua vida?
Podemos vislumbrar uma resposta em seu próprio depoimento:
“A colônia judaica tem uma estratificação social interna, porque há judeu e há judeus. O pessoal da Hebraica, em geral, tem uma boa biblioteca etc. e tal. Mas a grande preocupação da maioria deles é jogar bridge. Esse é um tipo de judeu. Outro tipo é o pessoal que veio do campesinato ou de um proletariado de origem artesanal da Europa, do que se chama de pequena aldeia. (...) Veja bem, há uma ilusão: pensar que o grupo judaico é integrado. Não é verdade.” (TRAGTENBERG, 1999: p.18)
Tragtenberg faz uma diferenciação entre os judeus oriundos da Alemanha (que “têm, em geral, muito capital cultural”, é “mais ocidentalizado” e seus filhos geralmente haviam feito universidade); os judeus italianos e franceses, chamados Sefaradi (“o mais culto, o mais erudito de todos, o de maior capital cultural”); e o judeu que veio da Rússia e Lituânia (camponeses “realmente desprovidos”, cuja linguagem, o iídiche, tinha uma “pronúncia meio carregada”). O iídiche se tornou, segundo Tragtenberg, um “mecanismo de identificação do grupo.” No grupo judaico, “quando uma pessoa abria a boca, o sujeito já identificava de onde era, de que região vinha.” (Id., pp. 18-19)
Boris Fausto (1998: p. 34), nos fornece um dado que corrobora esta estratificação. Numa análise sobre a imigração em São Paulo, ele mostra como o “judeu ascendente”, que morava no Bom Retiro, muda-se para Higienópolis e também muda seu padrão de vida.
Com efeito, tratamos de sujeitos concretos, e não de indivíduos diluídos nas generalidades abstratas das análises teóricas. Tragtenberg não é o único a conceber a questão judaica desta forma. Desde que Marx escreveu A Questão Judaica, instaurou-se a polêmica. [8]
A posição de Tragtenberg sobre a questão judaica aproxima-se das análises marxistas. DEUTSCHER (1970), numa perspectiva marxista, pensando o judeu concreto, numa sociedade concreta e historicamente determinada, desenvolve a tese da identidade negativa, dada pela pressão do outro, pela alteridade fundada no estigma:
“O que vem recriando constantemente uma consciência judaica e injetando-lhe, sempre, nova vitalidade tem sido o hostil ambiente não-judeu que o cerca.” (p. 46)
Duetscher questiona as definições que se fundamentam em argumentos étnicos, religiosos e ou nacionalistas. Se a identidade do judeu não é dada por estes valores, qual será, então, o elemento que a define? A sua reposta é clara:
“Se não é a raça, que é então que faz um judeu? Religião? Eu sou ateu. Nacionalismo judaico? Sou internacionalista. Dessa forma, em nenhum dos dois sentidos sou judeu. Sou judeu, entretanto, pela força da minha incondicional solidariedade aos perseguidos e exterminados. Sou judeu porque sinto a tragédia judaica como a minha própria tragédia; porque sinto o pulsar da história judaica; porque daria tudo que pudesse para assegurar aos judeus auto-respeito e segurança reais e não fictícios.” (Id., p. 49)
Seria esta uma reposta tragtenberiana? Não sabemos. O que sabemos, por seu próprio depoimento, é que passou por uma crise de valores étnicos e religiosos, já na pré-adolescência:
“No começo, fiquei numa dúvida terrível sobre a religião. Porque ia à Sinagoga, tinha sido batizado na Sinagoga, aquele ritual todo. Achava estranho as mulheres em cima e os homens embaixo, mas até aí tudo bem, não tinha movimento feminista, naquele tempo, na sinagoga...” (Id., p.20)
Tragtenberg passa a ler pensadores cristãos como Alceu Amoroso Lima e trechos de Pascal; passou a achar que Cristo não “era tão mau assim.” A ruptura veio aos 14-15 anos. Ele havia encontrado a saída:
“Nem judeu e nem o cristão. Optei... pelo ateísmo...” (Id., p. 21)
Começara outra fase em sua vida. Neste processo, muito contribuiu o clima que cercava jovem Tragtenberg no bairro que morava e também a conjuntura política brasileira. A partir desta época:
“Todo o peso do judaísmo e da cultura judaica, quer dizer, da escola, da literatura e tudo mais, ficou em segundo plano. Por que? Porque o Brás era um bairro industrial, em primeiro lugar. Segundo, porque o Brás tinha realmente uma imigração italiana, espanhola e portuguesa.” (Id. p.23)
É preciso analisar a força e extensão desta ruptura. Será que a negação do judaísmo foi completa? Será que a saída encontrada livrou-o do estigma que a sociedade impõe aos judeus? Será que isto não provocou reações dos que partilham sua etnia? Terá influenciado sua vida posteriormente?
São muitas perguntas para as quais não temos respostas e talvez não sejam as perguntas certas. De qualquer forma, o fator judaico faz parte da sua formação e, neste sentido, constitui uma das suas universidades.
Logo depois da vista de Plínio Salgado à capital gaúcha, sua família muda-se para o Bom Retiro [9] , bairro da capital paulista:
“Fomos habitar à rua Tocantins, no bairro do Bom Retiro. Eu freqüentava o “Thalmud Tora”, uma escola judaica ortodoxa. De manhã estudava as matérias comuns do ciclo primário e à tarde o índice hebraico e comentários do Velho Testamento.” (Id., p.11)
Diferentemente do Brás, onde morou posteriormente, o Bom Retiro era, à época, predominantemente judaico, com forte presença dos italianos radicados no Brasil. Tragtenberg diferencia-os: não era o italiano burguês, “como é o francês judeu, o inglês judeu”:
“Estes não se consideram judeus; eram acima de tudo italianos. Isso dava problemas. A Lélia Abramo viveu a guerra na Itália , sentiu e viveu este problema. Primeiro, era considerada judia pelo sobrenome Abramo, este é um problema de judeu. E há também o problema de classe social. O judeu italiano é classe média alta. O caso do alemão é a mesma coisa.”(Id., pp.19-20)
No novo lar, Tragtenberg não escapa ao clima opressivo próprio do estado novo getulista. Era uma época em que a simples menção da palavra comunista poderia colocar o indivíduo em apuros. Será que o menino Tragtenberg tinha plena consciência da situação? O adulto Tragtenberg recorda-se de um certo cidadão que “vivia de pijama e fumava cigarros fulgor” e que morava com uma família judia de origem húngara. O cidadão desapareceu. O boato é que ele era comunista. (Id) Muito interessante Tragtenberg lembrar tal fato, inclusive com os detalhes: o cigarro e os hábitos do cidadão.
Com a morte precoce do seu pai, Maurício Tragtenberg, ainda na flor da idade, começa a trabalhar: era preciso ajudar no orçamento doméstico. Para ele, é neste momento que, à semelhança de Gorki, iniciou suas universidades. Nesta época, ele passou a freqüentar um bar na rua Ribeiro de Lima, onde tinha “comida barata e mesa sem toalhas.” Neste bar, ele tem contato com “trabalhadores de origem letã, lituana, russa, polonesa, muitos haviam, inclusive participado da Revolução Russa, haviam topado pessoalmente com Lenin, Trotsky, Zinoviev ou Bakunin.” Estes nomes marcariam a sua vida intelectual. (Id.)
É de se imaginar as conversas que jorravam nestes encontros, os temas discutidos. Tragtenberg, numa das características que o marca, a valorização do conhecimento considerado como senso comum, fez questão de enfatizar:
“Não eram “temas”de academia e sim expressões de relações sociais e políticas vividas.” (id.)
Quando a família Tragtenberg mudou-se para o Brás, na rua Santa Clara, rua Cachoeira e rua Catumbi, no Belenzinho, o Brasil entrara num novo período da sua história: caíra a ditadura varguista. Era uma época de efervescência política: em pauta a redemocratização do país, a constituinte, a legalidade do PCB.
Tragtenberg entra no Partido Comunista. Esta experiência, embora curta, marcou a sua vida. A professora Agueda Bittencourt escreve:
“Aos 16 anos uma experiência política marcará profundamente a sua história e se converterá numa de suas citações prediletas nas críticas à burocracia e ao exercício de poder no interior dos partidos políticos de diferentes vertentes ideológicas. Filiou-se ao PCB, fez trabalhos de base (colou cartazes, pichou muros, distribuiu panfletos) mas na discussão política as ordens eram ouvir e seguir. Maurício discordou e foi expulso com base no artigo 13 do Estatuto do Partido: "É proibido ao militante do partido qualquer contato direto ou indireto com trotskystas ou outros inimigos da classe operária.” (BITTENCOURT) [10]
Na fala de Tragtenberg, podemos observar as influências que determinaram sua entrada no PCB:
“Perto da minha casa, na rua Belém, o PCB alugara um quarteirão onde se instalara a sede de seu comitê estadual. (...) Foi lá que, na venda da esquina da rua Catumbi com a Ivinhema, encontrei um operário espanhol com o inevitável bigode, que, olhando minha aparência mirrada – na época o meu apelido social era Gandhi, tal a magreza – “Oh!rapaz, queres ficar forte? Entras para o PCB.” Contribuiu para a mesma tendência um sapateiro espanhol, meu vizinho, que entre um prego e outro na sola do sapatão discorria sobre reforma agrária, o que fora a guerra civil espanhola e a importância do PCB.” (Memorial, p.12)
A fala de Tragtenberg indica as influências, suas universidades, a alteridade que forja sua identidade. Este é um primeiro passo para compreender sua biografia e levantar questões.
Feita esta ressalva, vejamos quais as conseqüências desta breve passagem pelo PCB. A expulsão do PCB aproximou-o do revolucionário Trotsky, “lido e relido de cabo a rabo.” (BITTENCOURT) A proximidade com o trotskismo levou-o a estabelecer vínculos muito fortes com o jornalista Hermínio Sachetta. O professor Ricardo Antunes, relembra esta intensa relação, resgatando um artigo que Tragtenberg escreveu no jornal Fola de S. Paulo, quando da morte de Hermínio Sachetta:
“Sob influxo do ‘Velho’, líamos e fazíamos a crítica dos clássicos do bolchevismo, sem perder de vista que a realização de um projeto socialista não passa pela mera substituição de homens no poder do Estado, mas na ruptura com as formas de exploração e dominação existentes”. (FSP, 02.01.1982, citado por ANTUNES)
Para Ricardo Antunes, que conheceu profundamente Maurício Tragtenberg, inclusive dividindo uma sala com ele e o Professor Afrânio Mendes Catani, na década de 70, quando trabalharam na Fundação Getúlio Vargas, “foi neste universo que sua crítica societal e sua recusa da política institucionalizada cada vez mais confluíam com o ideário anarquista.” (ANTUNES)
No Brás, Tragtenberg teve contato com outra das suas universidades, uma das mais significativas: a família Abramo. A partir deste convívio começou a freqüentar a Biblioteca Municipal de S. Paulo Dormia no trabalho, trabalhava das sete às onze e depois ia para a biblioteca. Aos domingos visitava a família Abramo:
“A família Abramo foi a minha primeira universidade, no sentido de me informar. Todos liam o italiano e conheciam muito bem o idioma. E eu comecei a ler em italiano, a entrar em contato com a literatura, a cultura, o pensamento político italianos! E isso quer dizer, comecei a criar horizontes...” (TRAGTENBERG,1999: P. 28)
Com a família Abramo, Maurício “aprendeu muito da cultura italiana, inclusive a língua, e adquiriu uma visão crítica do bolchevismo.” (BITTENCOURT)
Na Mário de Andrade, Maurício começou a participar do chamado "grupo da Biblioteca" composto por Silvia Leser, Bento Prado Jr., Aracy Martins Rodigues, Carlos Henrique Escobar, Flávio Rangel, Antunes Filho, Maria Lúcia Monet, Leôncio Martins Rodrigues, Cláudio Lemos.
"Lia-se de tudo, de Aristóteles a Sprengler, passando por Fernando Pessoa, Sá carneiro e José Régio". (Memorial)
Foi uma fase muito importante para a formação de Tragtenberg. Vejamos alguns depoimentos que ilustra seu significado e o clima sócio-cultural da época. Comecemos pelo ensaísta Gilberto de Mello Kujawski:
“Jamais falei com Maurício Tragtenberg, mas o conhecia de vista, de longe, em livrarias do centro, em conferências, e na Biblioteca Mário de Andrade, ao tempo em que se chamava Biblioteca Pública Municipal, isso lá pelos idos de 50. Vejo, agora, pelo noticiário dos jornais, quando de sua morte, semana passada, que Maurício Tragtenberg, autodidata, completou sua formação estudando diariamente na biblioteca. Só agora compreendo porque ele estava sempre ali presente.
Consta que na biblioteca ele conheceu diversos intelectuais, entre eles os sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes. Parece até que aquele edifício dá sorte e prestígio.
Tragtenberg era moço tímido, um tanto desajeitado, o ar modesto. Quase nunca terminava as frases, suspenso nas reticências. O que não impedia que manifestasse aparência estranhamente obstinada. Ironia e obstinação, alicerçadas em grande cabedal de estudos.” (KUJAWSKI)
O Professor Leon Frejda Szklarowski, nos dá uma idéia do contexto paulistano:
“Naquela época, São Paulo, terra da garoa, do frio gostoso, que tomava conta dos bandeirantes, nas noites de inverno, era uma cidade quase pacata, nenhuma poluição, conquanto lá tinha seus problemas, próprios de toda cidade que começava a inchar de gente que vinha de toda parte: da Europa, da Ásia, da África, enfim dos rincões mais distantes e também de todo o Brasil. Esse Brasil imenso, que guarda, em suas entranhas, toda riqueza do mundo, mas que paradoxalmente produzia filhos miseráveis e famintos. Povoava-se de gente que fugira do inferno que nem Dante imaginara. Da fome que nenhum homem jamais experimentara. Dos campos de concentração que jamais alguém pensara pudesse existir. Era o castigo na Terra. As labaredas queimando o ser humano como se fosse um monte de papel jogado fora. A maldade no seu mais elevado patamar.
Era gente que buscava um novo lar, uma nova vida, um pouquinho de paz, uma pitada de tolerância, um bocado de compreensão e, por que não, alguma solidariedade que lhe faltou no antigo berço. O Brasil era o lugar esplêndido que acolheu a todos, desde sempre. E São Paulo tinha tudo de que careciam os novos imigrantes ou migrantes. Até a ilusão de um paraíso perdido, lá longe, e que talvez pudesse recuperar no planalto paulista, onde as imensas fábricas sujavam as paredes e o céu com sua fumaça cinzenta e espessa, mas que se traduziam em mais empregos, vida mais confortável e melhor para os filhos, para a família, às vezes até partida, pela dor de uma guerra, da tragédia que despedaçou homens, mulheres e crianças, sem piedade, sem remorso, com muita dor.
Terminava a grande guerra que dizimou milhões de pessoas. O mundo ainda se ressentia dessa malvada empresa e parecia que o homem enfim poderia conceber uma Terra Prometida, sem guerras, sem violência, sem fome. (...)
Foi, naquele cenário, que conheci Maurício, rapaz pobre, esguio, às vezes triste, com o olhar longínquo em busca de algo que não conseguia alcançar. Não pudera estudar, em curso regular, como qualquer outro menino de sua idade, da classe média baixa, mas não deixava por menos. Estudava. Pesquisava. Meditava. Escrevia. Não dava trégua à sua inteligência aguçada, à sua imaginação fértil. Seu espírito inquieto e indomável conduzia-o para um universo até então desconhecido e, mergulhado nos livros, que lhe alimentavam a alma faminta e atiçava sua inteligência e a imaginação criadora, não se deixava dominar pelas adversidades. Pelo contrário, encontrava forças inesperadas e rompia o silêncio na busca desvairada da verdade, não importa onde estivesse.” (SZKLAROWSKI)

Perdoe-nos a longa citação. Optamos por fazê-lo devido ao fato de que estes depoimentos nos dão uma visão do OUTRO sobre Tragtenberg e, ao mesmo tempo, oferece-nos um quadro importante do contexto histórico-cultural de um período importante da sua vida. Enfatizamos esta fase porque ela foi realmente muito importante para a sua formação: “Foi o melhor período da minha vida”, afirmou. (TRAGTENBERG, 1999: p. 49)
A convivência na biblioteca com intelectuais que se tornariam referências nacionais, levou Tragtenberg a vivenciar outra das suas universidades: o Partido Socialista. Com a aproximação com os socialistas Tragtenberg conheceu a obra de Rosa de Luxemburgo e suas críticas aos "descaminhos do bolchevismo". Nesta fase, também conheceu a história da revolução camponesa liderada por Makno e também o que aconteceu com os marinheiros de Kronstad.
“A principio, eu achava o Partido socialista meio babaca, porque o programa era eleitoralista, o voto era tudo. Falava muito de democracia, mas não tinha operário, só intelectual e tinha um chamado grupo de centro. Esse grupo era uma espécie de cabeça socialista. Rogê Ferreira, Oliveiros Ferreira, Aziz Simão, O Febus Gicovate, que era o meu médico.” (Id., p. 31)
Maurício freqüentava os cursos do Partido Socialista. O contato com Aziz Simão, Paul Singer e Antônio Candido, entre outros, estimularam-no à leitura dos clássicos do marxismo. O tema da burocracia lhe fascinou.
Estas universidades abriram-lhe as portas para a Universidade formal. Através de Antônio Cândido, ficou sabendo da existência de uma lei federal que permitiu-lhe a apresentação de uma monografia à FFCLH da USP e que dava-lhe o direito de prestar vestibular para ingresso na Universidade. Este trabalho seria publicado sob o título Planificação: desafio do século XX. Na apresentação do livro, Antônio Cândido, escreve:
“Com honestidade e heterodoxia, longe de dogmas e preconceitos, o Autor circula entre fatos históricos, sociais e econômicos com uma formosa liberdade, manifestando a cada instante uma equação pessoal que não se quer omitir e que atua como presença fecundante.” (In: TRAGTENBERG, 1967)
Este seria o primeiro de uma série de livros acadêmicos, além de outros militantes e artigos em inúmeras revistas. Talvez o mais significativo seja justamente aquele que resultou da sua tese de doutorado, Burocracia e ideologia. Assim, descreve-o o professor Ricardo Antunes:
"No clássico Burocracia e Ideologia, seu trabalho de maior fôlego, apresentado como Tese de Doutorado na USP, em 1973, ofereceu um abrangente desenho histórico-crítico das formas da dominação burocrática. Alicerçado particularmente em Weber, Marx e Hegel, fez uma análise da burocracia, desde sua aparição no modo de produção asiático, até as corporações capitalistas modernas, bem como sua vigência na sociedade soviética, onde “a burocracia detém coletivamente a propriedade dos meios de produção e o monopólio do poder político. O proletariado não participa da direção da produção, está relegado às funções de pura execução”. Apesar de sua forte ancoragem weberiana, mostrou como este “modelo, para qual a burocracia se esgota como organização formal, não explica situações em que a burocracia não é agente dos detentores do poder econômico – como no capitalismo clássico – mas definida como um poder econômico e politicamente dominante”. As teorias de Henry Ford, Taylor e Elton Mayo foram também amplamente tematizadas. Em verdade, a questão da burocracia e do poder burocrático foi o verdadeiro leitmotiv da reflexão de Tragtenberg.” (ANTUNES)

Tragtenberg iniciou a kafkiana vida de professor dando aulas no magistério em Iguape. Casado, seu filho Marcelo havia nascido, mudou-se para Iguape, deixando a família com sua mãe. Na bagagem, toda a obra de Max Weber. Dava aulas o dia todo, no normal e no colégio. No pouco tempo que lhe restava ele aprofundou o estudo do pensamento weberiano.
Aqui temos um detalhe importante: em seu depoimento é possível assimilar seu método de estudo, que marcará toda a sua obra posterior e sua relação com os alunos e orientandos:
“Não é que comecei a ler simplesmente; vi que dava tempo para fazer muito mais, para pegar, por exemplo, a sociologia do direito e reconstituir os estudos sobre direito inglês, islâmico, judaico ou romano, a partir das indicações das notas de rodapé, paralelamente à leitura do próprio Weber.” (TRAGTENBERG, 1999: p. 59)

Esta experiência durou dois anos. Tragtenberg foi convidado a trabalhar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto. Em seu depoimento cita, um “grupo muito bom” que trabalhava nesta faculdade: Michel Lowy, Norman Potter e Wilson Cantoni. Eram os anos de 1962-63.
Nesta fase, ocorre a greve do magistério (1963). Embora afastado de Iguape, Tragtenberg, do ponto de vista legal, mantinha seu cargo, já que era concursado. Ele se envolve com a direção da greve, a primeira da categoria. Para ele, foi uma experiência incrível.
No ano de 1964, a barra pesou. Vieram as delações, as perseguições, o assalto à sua biblioteca pelos agentes do regime militar (“esse pessoal não espera o Diário Oficial, querem te enquadrar no ato; eles entram em tua casa e já começam a roubar livros”), e a demissão pelo Ato Institucional I. foi a fase mais difícil da sua vida. Perdeu tudo... (Id., p. 63)
Tragtenberg não suportou: entrou em colapso nervoso e internou-se. Talvez o mais admirável seja o fato de Tragtenberg ter conseguido escrever Burocracia e Ideologia nestas circunstâncias. Pressionado pelos prazos e as exigências burocráticas, saiu do hospital com o primeiro capítulo pronto.
Tragtenberg angariou muitas simpatias em sua carreira docente. Mas também muita antipatia. Muitos dos seus próprios pares não viam com bons olhos suas propostas e prática pedagógicas. Observamos este elemento em seus depoimentos, principalmente na fase kafikiana em que viveu nestes anos:
“Tinha um ódio diluído de todo meio universitário, em função de uma prática pedagógica que acabava com a hierarquia, que acabava com os critérios tradicionais de avaliação e redefinia a relação de poder em sala de aula, redefinia isso no cara a cara. Não era só escrever ou falar sobre, há uma prática colocada nisso. Naquele tempo, a PUC era reaça (...). O pessoal da USP já olhava a gente como uns carbonários. (...) O próprio meio universitário, por mais que se dissesse marxista, tinha muita resistência a esse tipo de prática pedagógica; era muito doutoral, muito professoral.” (Id., p. 67)
Tragtenberg era realmente instabilizante. Para nós, que tivemos o prazer de conhecê-lo como mestre e companheiro de caminhada, é difícil escrever sobre sua relação pedagógica com seus alunos e orientandos. Sempre há o risco de adotarmos, ainda que inconscientemente, o papel de discípulo – o que não faria jus à sua prática política-pedagógica. Recorremos ao depoimento do Prof. Evaldo Vieira, que teve um convívio profundo e duradouro com Tragtenberg, para compreendê-lo melhor e sem apologismo:
“Em poucas palavras, Maurício ensinava a ensinar, ensinava a ler, ensinava a pensar e ensinava a selecionar obras importantes e obras desimportantes e desnecessárias. Dava pouca ênfase na transmissão de informações e de conteúdos; dava muita ênfase na interpretação crítica e, sobretudo, na indicação de obras primordiais, mas imprescindíveis, conforme o interesse de cada um, independente do campo de estudo. Não existia área do conhecimento em que ele não trouxesse contribuição segura, válida, referente a qualquer época. Tal abrangência relativa a obras,a artigos, a edições raras ou não, em diferentes línguas, bem confirmada nos escritos, especialmente nos livros.” (VIEIRA,1999: p. 8)
Confesso que, neste momento, perco a objetividade. As palavras do Prof. Evaldo emocionam-me porque se concretizam na minha memória, como se estivesse revivendo-as. Mas, é possível ao sujeito abdicar de todo e qualquer sentimento ao escrever? Lembro-me das palavras de Hannah Arendt sobre os estilos de biografar e também do seu texto sobre a compreensão...
Bem, retomemos o fio da meada. Continua o Prof. Evaldo:
“A docência no ensino secundário e no ensino superior, por décadas, significou para Maurício Tragtenberg um lugar de trabalho e de estudo, mas não significou seu único lugar, talvez não tenha sido sequer o principal lugar de ação intelectual. Falou em muitos recintos deste país, tendo apenas como recompensa a convicção ética e política de mudá-lo, tirando-o do domínio das oligarquias, das tecnoburocracias e dos salvacionistas. Maurício Tragtenberg não cultivou discípulos, mas dividiu seus conhecimentos com outras pessoas; não se ligou a grupos de qualquer tipo, mas manteve sua opção política de vanguarda; não se sujeitou aos esquemas e aos modismos acadêmicos, mas procurou expor suas análises com originalidade; não se preocupou em conceder entrevistas capazes de arrumar sua vida e sua trajetória política e intelectual, o que não é comum nos dias que correm.” (Id., p. 9)
É este indivíduo concreto e datado historicamente que influirá a vida de muitos que conviveram com ele na PUC, na FGV, na UNICAMP e, também, no movimento sindical e popular. Analisar a extensão desta influência é mais uma tarefa a fazer. No entanto, como diz Tragtenberg, alguém que influenciou a
“mudança de paradigmas numa área e fecundar uma obra como a de Fernando Prestes Motta, José Henrique Faria, na teoria administrativa, Fernando Coutinho Garcia da UFMG, conseguiu seus objetivos. Isto porque, segundo os clássicos chineses, influenciar é ter poder.” (Memorial, p. 20)
Nesta trajetória, Tragtenberg, em vários momentos, reconhece a incalculável importância da sua família. Seria esta outra das suas universidades? Certamente que sim. Não temos condições, no momento, de analisar esta questão. Fiquemos com as palavras do próprio Tragtenberg que, melhor que ninguém, expressa seu reconhecimento:
“Em suma, os lados positivos dessa trajetória só foram possíveis de aparecer graças ao imenso apoio da minha companheira Beatriz.”(Id.)

Algumas considerações conclusivas...
Tragtenberg é uma daquelas pessoas que não se enquadra em rótulos. Quem teve o privilégio de fazer parte da sua história sabe que semelhantes adjetivos “nem sempre serviram para expressar seu lugar na academia, a sua estatura no campo da pesquisa nem mesmo para mostrar o trabalho que realizou para construir sua própria formação”. (BITTENCOURT)
Antunes, concordando com esta análise, escreve:
“Maurício Tragtenberg foi um intelectual herético. Foi, ao mesmo tempo, fortemente influenciado por Marx, Weber, pelos anarquistas e também por Trotsky. Disso resultou um autor criativo e agudamente crítico da sociabilidade contemporânea, agudamente anti-capitalista e contrário às formas de opressão anti-operária. Ele atava vivamente sua reflexão teórica ao solo societal brasileiro marcado.” (ANTUNES)

Vejamos outro depoimento que confirma os anteriores:
“Como sociólogo que fazia uma singular aproximação de Weber, com o marxismo e anarquismo, teve sempre como eixo a dimensão libertária, uma integridade pessoal e intelectual exemplares, um compromisso de luta jamais esmorecido, um empenho sem reservas na promoção da causa popular e democrática.” (FONTANA)
Estas peripécias teóricas de Tragtenberg deixa confuso os rotuladores de plantão. Mesmo a alcunha de anarquista não lhe cabe de forma ortodoxa: Como assinala Antunes, ele é “desconcertantemente heterodoxo”:
“Num instigante ensaio sobre as relações entre Marx e Bakunin, disse MaurícioTragtenberg: “...enquanto Marx estruturava uma obra crítica à economia capitalista em O Capital, não se encontrava na obra de Bakunin algo parecido, nem no conjunto das obras dos chamados ‘libertários’ que se opõem aos chamados autoritários”, como Rocker, Kropotkine ou Broockin”. Maurício Tragtenberg mostrava que a “estrutura centralizadora, autoritária e jacobina” estava presente na formulação de Bakunin e não naquela formulada por Marx. (“Marx/Bakunin” em Marx Hoje, Ed. Ensaio) (ANTUNES)
Em nossa opinião, as bases da formação intelectual de Tragtenberg, que constituem parte da sua biografia, são as suas universidades, os elementos que caracterizam a alteridade que constróem sua identidade (LAING). No transcorrer do nosso itinerário, procuramos identificar estas universidades e contextualizá-las.
Maurício Tragtenberg rompeu com todos os convencionalismos, a começar por sua formação escolar. Autodidata por imposição da situação financeira à época, não chegou a completar o primário. Chegou à Universidade sem passar por ela. Em vez dos bancos das salas de aula, freqüentou bibliotecas e grupos de intelectuais, muitos também autodidatas, com os quais exercitava o aprendizado solitário.
Sua história de vida é um exemplo de tolerância teórica-política; uma contribuição pedagógica aos que ainda acreditam na capacidade humana de se superar e, acima de tudo, de manter a esperança. Maurício é uma contribuição à compreensão, no sentido de Hannah Arendt, do homem e do mundo.

* Professor de Ciência Política na Universidade Estadual de Maringá e doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
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Notas:
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