QUEM SÃO? QUE QUEREM? QUE FAZER COM ELES?
sábado, 10 de dezembro de 2011 by Reciclagem de Artigos in

QUEM SÃO? QUE QUEREM? QUE FAZER COM ELES?

EIS QUE CHEGAM ÀS NOSSAS ESCOLAS AS CRIANÇAS E JOVENS DO SÉCULO XXI

Marisa Vorraber Costa
Ufrgs/Ulbra

Este texto foi preparado para a Mesa Redonda Currículo e Identidades , o que exige uma breve explanação sobre como vejo o encaixe entre este tema e aquele sugerido no título que escolhi. Inicio ressaltando que existem muitos jeitos de se abordar a questão da identidade. A própria flexão da palavra no singular ou no plural expressa, por si só, um posicionamento teórico-conceitual. Se perguntarmos “o que quer dizer identidade?” podemos nos referir tanto à noção psicanalítica de sujeito, ao processo psíquico de aquisição de identidade, como à concepção antropológica de conjunto de características distintivas de um grupo, ou à recente tendência culturalista de conceber a identidade como uma “celebração móvel”. O termo identidade é relativamente novo nas ciências sociais, tornando-se um conceito central apenas nos meados do século XX. Contudo, as questões que hoje estão implicadas na rubrica da identidade não foram inteiramente desconhecidas dos clássicos. De acordo com Lomnitz (2002), quando Weber tratou do status, Marx, da consciência de classe e Durkheim, de representações coletivas, estavam ocupados com nuances desta problemática, que se insinuava já nos séculos dezoito e dezenove.
O fato da identidade ocupar um lugar tão proeminente na teoria cultural contemporânea está relacionado às transformações radicais em andamento no mundo e, particularmente, às rupturas, descontinuidades, deslocamentos e instabilidades que se instalam no panorama das teorizações, concepções e manifestações ditas pós-modernas. A identidade é um dos construtos modernos que se estilhaça inapelavelmente. Tal estado de coisas tem sido diagnosticado como “crise da identidade”  condição em que os indivíduos e grupos estariam deslocados tanto de seu lugar no mundo quanto de si mesmos. De uma concepção una, centrada, equilibrada, coerente e estável de identidade, passa-se a fragmentação, efemeridade, mobilidade, superficialidade, flutuação. Podemos ser um e muitos, ao mesmo tempo e em diferentes tempos. A identidade parece que está à deriva no tempo e no espaço, o que a torna permanentemente capturável, ancorável, mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo escorregadia  uma celebração móvel, como recém mencionei, utilizando-me de expressão empregada por Stuart Hall (1998).
Os apontamentos que pretendo destacar em minha participação nesse Colóquio inscrevem-se neste caráter cambiante e plurifacetado das identidades. A partir das observações que venho realizando em um projeto de pesquisa recém iniciado, meu objetivo é problematizar uma das faces das identidades de crianças e jovens escolares  aquela que é fabricada pela interpelação midiática associada ao consumo (de bens, mercadorias, imagens...). Antes disso, contudo, considero prudente estabelecer algumas salvaguardas.
Em primeiro lugar, minha intenção é expor e discutir uma das possibilidades de se pensar tais identidades a partir de sua inscrição no panorama do que vem sendo entendido como condição pós-moderna. Com isto, não pretendo desqualificar outras abordagens e outras maneiras de problematizar a questão da identidade em sua conexão com o currículo. Tampouco penso que a face que procurarei visibilizar seja “a verdadeira”, a mais problemática ou a mais importante. Ela é apenas uma delas, mas suas conseqüências para a sociedade, a educação, a escola e o currículo podem ser tão sérias que não deveríamos negligenciá-la. As imagens e idéias expostas têm como referência algumas escolas públicas de ensino fundamental de Porto Alegre. Interlocutores e interlocutoras desta exposição podem me ajudar a conferir se trata-se de uma evidência localizada e particular ou se, como suponho, é algo mais ou menos disseminado nos espaços escolares contemporâneos deste País. Com isto, já estou argumentando em favor de minha segunda salvaguarda que é a de que me situo em uma perspectiva de análise que acolhe esse caráter plurifacetado, fragmentado e mutante das identidades. Entendo que a constituição da identidade de crianças e jovens como estudantes e como sujeitos do currículo dá-se no entrecruzamento de vários fluxos e redes de poder. Tomo aqui a noção de sujeitos do currículo no sentido foucaultiano de “estar sujeito a”. Quero dizer com isto, também, que os sujeitos escolares são subjetivados simultaneamente por múltiplos discursos. Crianças e jovens quando chegam à escola já foram objeto de um conjunto de discursos, que produziram diferentes “posições de sujeito”, entre eles, aqueles que os constituem como consumidores, como clientes. Finalmente, a última baliza que desejo colocar nesta reflexão é a de que embora estejamos inseridos em redes discursivas que nos antecedem e ultrapassam, as tramas sempre têm lugares de escape. Pelas frestas, desvãos, buracos, as subjetividades deslizam, fluem, e podem tornar-se diversas. Nem todas as pessoas sujeitas aos mesmos discursos são subjetivadas da mesma forma. Embora a tendência seja favorável à homologia, não há um determinismo total e inescapável. Reportando-me aos estudos de Elizabeth Ellsworth (2001), arrisco-me a dizer que o modo de endereçamento (de um filme, de uma propaganda, uma novela, uma música) freqüentemente erra seu alvo, além de que não existe um único e unificado modo de endereçamento.

Quem são? Que querem? Que fazer com eles?

Quando tratamos de identidades, sujeitos e subjetividades, estamos lidando com construtos implicados em problemáticas afins, cujos significados são contíguos. As fantásticas mudanças verificadas a partir da segunda metade do século XX, desencadeadas, sobretudo, pelos vertiginosos avanços nas tecnologias da informação e da comunicação, estão intimamente relacionadas com a verdadeira revolução pela qual passam tais conceitos. A movimentação denominada por Hall (1997) de “virada cultural”, posicionando a cultura no centro dos acontecimentos e da vida nas sociedades do limiar do novo milênio, estabelece nova direção de fluxo na definição da identidade. O sujeito, antes concebido como uma agência centrada, estável e emanadora do sentido identitário, tem sua posição deslocada. A condição pós-moderna, acentuadamente marcada pela visibilidade, objetifica o sujeito em meio à transparente cena contemporânea. Crianças, jovens, mulheres, negros, idosos, docentes, surdos, etc., são exemplos de identidades recriadas e reinventadas de múltiplas formas pelas variadas narrativas que passam a circular de forma planetária, fazendo aparecer novos atores sociais. Contemporaneamente delineiam-se nitidamente as condições que instauram o caráter provisório e construído das identidades. A proliferação discursiva sobre os infantis, por exemplo, acaba por produzir múltiplas narrativas sobre a infância. Todas elas, ao falarem de modos de ser sujeito, interpelam, convocam e subjetivam. Os ditos sobre as crianças inventam infâncias ao mesmo tempo em que subjetivam os infantis, instalam e legitimam formas de lidar com eles. O mesmo raciocínio se aplica a jovens, negros, índios e tantas outras identidades. Nesse panorama é que elas deixam de ser unificadas e passam a ser descentradas e móveis. É nesse cenário, também, que se tem afirmado que as professoras estão preparadas para educar a infância inventada no século XIX ¬ ingênua, dependente dos adultos, imatura e necessitada de proteção  enquanto suas salas de aula estão repletas de crianças do século XXI  cada vez mais independentes, desconcertantes, erotizadas, acostumadas com a instabilidade, a incerteza e a insegurança.
A perspectiva que exponho neste trabalho tem a ver com as recentes formas de assujeitar, subjetivar e narrar as identidades, formas estas forjadas no cenário pós-moderno, na cultura do espetáculo, da visibilidade, do consumo, da comunicação, das mídias, dos computadores, da indústria cultural, da flexibilidade, da descartabilidade.
Já faz algum tempo que tem me chamado a atenção alguns relatos que dizem respeito a certos atravessamentos de artefatos culturais contemporâneos na vida escolar. Uma aproximação com vistas a obter mais detalhes sobre tais acontecimentos tem descortinado um vasto e novo repertório da cultura pós-moderna, predominantemente midiática, que se insinua na vida das pessoas, alterando as rotinas e as práticas cotidianas no interior de instituições consagradas como é o caso da família e da escola.
Há um ano atrás, num destes auditórios da UERJ, quando participava de uma das mesas redondas do II Seminário Internacional sobre Redes de Conhecimento , uma professora perguntou-me se nós, pesquisadores e pesquisadoras voltados para análises da cultura, já havíamos nos dedicado a examinar a invasão dos Yu-Gi-Ohs na vida da garotada e nas escolas. Eu já ouvira falar da tal onda, mas quase nada sabia sobre ela. Alguns dias depois, uma pequena reportagem na Folha de São Paulo, enviada a mim por uma aluna, contava sobre esta nova febre, cujo nome refere-se ao desenho animado/jogo de cartas/vídeogame japonês que se transformara em polêmica  acusado de “coisa do demônio”  no programa de televisão de Gilberto Barros, na Bandeirantes. Logo em seguida, o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em seu suplemento semanal sobre educação, também se ocupava do fenômeno Yu-Gi-Oh. Na curiosa matéria publicada, o foco principal é o projeto desenvolvido por uma escola para fazer frente à invasão dos Yu-Gi-Ohs, no qual as tais cartas com imagens representando demônios orientais são substituídas por tópicos humanistas, retirados do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesta escola é proibido praticar o jogo de cards Yu-Gi-Oh, mas está liberada esta adaptação inventada pelas professoras. Relatos de alunas do curso de pedagogia que foram conhecer o projeto dão conta de que a febre do jogo arrefeceu dentro da escola, contudo, quando entram nos veículos que fazem o transporte escolar, as cartas demoníacas surgem de dentro de bolsos, pastas, lancheiras e arquivos, e o jogo é praticado freneticamente pela gurizada. Solicitados a opinar sobre a versão adaptada, os garotos declararam tê-la acolhido por falta de alternativa. Consideravam o jogo de cartas original, povoado por demônios poderosos, heróis e vilões de todo tipo, instigante, desafiador e estimulante para o raciocínio, qualidades que teriam desaparecido na versão modificada que a escola aprovava.
Se os cards concentraram temporariamente a preferência dos meninos, as bonecas da linhagem Barbie, fabricada pela gigante Mattel, há mais de trinta anos vêm embalando os sonhos das meninas do Brasil e do mundo inteiro como modelo de mulher – adulta, sensual, charmosa, moderna, arrojada, independente, feminista. Milhões de meninas entre três e dez anos aprendem com a boneca lições para ser uma mulher bem sucedida. Contudo, a pedagogia Barbie, assentada, segundo seus críticos, sobre consumismo, futilidade e competição, faz da boneca um brinquedo perigoso, seja pelos valores que dissemina seja por seu inegável sucesso em promover a identificação das meninas com seu universo existencial. Expressão disso é o fato de que todas as meninas entrevistadas em uma escola de periferia declararam orgulhosamente possuir, pelo menos, uma Barbie. A maioria delas colecionava a boneca, sabia exatamente o valor de cada modelo, se era original ou não, e afirmava sonhar em ampliar a coleção. Muitas informaram ser a Barbie o bem mais precioso que possuíam, motivo pelo qual era objeto de todos os seus cuidados e atenções, mantendo-as, também, sempre atentas aos novos lançamentos relacionados à boneca – roupas, sapatos, carros, amigas, namorados, viagens, etc.
Assim como os Yu-Gi-Ohs e as Barbies, inúmeros artefatos da cultura contemporânea, especialmente da cultura popular midiática, moldada, como sabemos, por forças políticas, econômicas, sociais e culturais, têm não só invadido a escola como disputado com ela o espaço pedagógico. A indústria do entretenimento não se restringe a fazer circular mercadorias, ela protagoniza uma pedagogia cultural regida por poderosas dinâmicas comerciais, assentadas sobre estética e prazer, que se impõem sobre as vidas privadas e públicas de crianças, jovens e adultos. Lembro o depoimento de uma ex-aluna, professora da quarta série do ensino fundamental, declarando que precisava destinar, pelo menos os quinze minutos iniciais de sua aula, todas as manhãs, para as crianças poderem discutir o seriado Malhação, da rede Globo. As tramas do capítulo da tarde anterior produziam tal impacto sobre a garotada que era impossível iniciar o trabalho de sala de aula no dia seguinte sem antes permitir que as conversas e trocas de impressões e experiências aplacassem as tensões geradas pelo episódio. Jeitos de ser jovem eram cotejados e debatidos, como se as situações e personagens da novela fossem parte da vida de cada criança, mobilizando seus desejos e sonhos, induzindo escolhas e decisões, e modelando comportamentos.
Em outro departamento da cena escolar, podemos testemunhar, outra vez, a força das corporações empresariais nesta modelagem. Batata frita, salgadinho, hamburguer e refrigerante têm sido os alimentos preferidos da população jovem escolar, em detrimento de uma merenda balanceada e nutritiva. Amplamente difundidos, os maus hábitos alimentares que vêm assolando a população mundial  principalmente crianças e jovens , dobrando o número de obesos , são incentivados por campanhas promocionais que, não raro, potencializam a capacidade dos produtos na geração de prazer e fruição. Adquire-se uma determinada marca de salgadinhos, ou outro alimento qualquer, porque, junto com estes, dentro da embalagem, vem também o bonequinho do Homem-Aranha, a decalco das Meninas Super-Poderosas, o bottom do Ronaldinho ou o prendedor de cabelo da Sandy. Além disso, a maior parte de tais guloseimas estão associadas a desenhos animados, seriados de sucesso, grupos musicais, etc. Salvo raras exceções, as cantinas escolares são uma fulgurante vitrine destes produtos destituídos de valor nutricional mas investidos de significados simbólicos que os tornam altamente desejáveis. Como nos alerta a pesquisa de Isleide Fontenelle (2002) sobre a McDonald´s, quem come um Big Mac ingere uma combinação complexa de valores, desejos, estilo de vida e padrão universal de gosto, embalados pelo nome da marca. Em sua vida cotidiana, jovens e crianças são submetidos ao fascínio e aos apelos estéticos consubstanciados em narrativas que empreendem uma verdadeira cruzada para a mercantilização de objetos, imagens e toda a sorte de artefatos consumíveis. Bem à propósito, poderíamos afirmar que no mundo que Guy Debord (1997) batizou de sociedade do espetáculo, pão e circo se confundem.
Parte considerável das análises contemporâneas têm ressaltado enfaticamente as subjetividades como objeto de sujeição e disciplina. Na escola e na família parece que têm surgido linhas de fuga, mas é muito difícil escapar do que poderíamos denominar “subjetivação cultural”  algo mais ou menos fortuito em termos de endereçamento, mas que atinge a todos nós, de várias formas, em praticamente todas as esferas de nossa existência hoje em dia. Isto porque as práticas de subjetivação escolares, familiares e religiosas requerem, em grande parte, renúncia, abnegação, provação e obediência. A subjetivação cultural, por sua vez, reveste-se quase sempre de peculiaridades que acionam o lúdico, a fascinação, o deleite, ou seja, somos subjetivados na fruição e no prazer, ou na expectativa destes; nestes casos parece que não há resistência.
Assim, não podemos esquecer que os sujeitos do currículo são, antes de tudo, as subjetividades forjadas em uma cultura regida pelos apelos do mercado. As regras, estratégias e o modus operandi das sociedades neoliberais de economias globalizadas articulam-se caprichosamente para fabricar um cliente. Elas operam segundo uma lógica que Veiga-Neto (2000) denomina governamentalidade neoliberal: “uma razão ou tática de governo, uma racionalidade governamental que descobre a economia e que faz da população o seu principal objeto” (p.181). O autor ressalta a utilidade de, inspirados no ímpeto foucaultiano de vontade de saber, irmos adiante, procurando examinar as mudanças que ocorrem tanto nas práticas escolares como nas “relações entre a educação escolarizada e essas novas e estranhas configurações que está assumindo o mundo contemporâneo”(p.181). Seguindo tal sugestão, podemos observar dentro da escola a circulação de crianças e jovens ostentando os ícones de sua inserção neste supermercado global em que, na visão de Jameson (1996), tudo está transformado em mercadoria. A posse de tais mercadorias (imagens, símbolos, narrativas, sentimentos, condutas, objetos...), detentoras de grande visibilidade e atualidade no aparato midiático, oferece ao proprietário um sentimento de pertencer que o converte em membro de uma comunidade de significados compartilhados, de uma cultura comum altamente desejável. Um olhar mais atento nos mostrará também a expansão de um contingente de cidadãos de “segunda classe” – crianças, jovens e adultos pobres, trabalhadores eventuais, sub-empregados, desempregados, não empregáveis  que, segundo a lógica do capitalismo tardio, não podem ficar de fora do circuito do consumo. Mesmo que não estejam habilitados a adquirir mercadorias de primeira linha, inventam-se categorias a eles adaptadas  réplicas, versões baratas de objetos de consumo desejados, que circulam amplamente no fluxo continuo dos mercados globais espetacularizados. Por sua vez, segundo análise de Beatriz Sarlo (1997),

Os miseráveis, os marginalizados, os simplesmente pobres, os operários e os desempregados, os habitantes das cidades e os interioranos encontram na mídia uma cultura em que cada um reconhece sua medida e cada um crê identificar seus gostos e desejos. Esse consumo imaginário (em todos os sentidos da palavra imaginário) reforma os modos com que os setores populares se relacionam com sua própria experiência, com a política, com a linguagem, com o mercado, com os ideais de beleza e saúde. Quer dizer: tudo aquilo que configura uma identidade social. (p.104)

É nas arenas desta cultura  em que a economia tem se apresentado como eixo principal  que se entrecruzam vontades de poder, modelando subjetividades encaixáveis neste ethos. Mas isto não se dá sem embates, e é aí que se travam as lutas pela identidade. A escola é uma destas arenas, no entanto “empobrecida material e simbolicamente, não sabe como fazer para que sua oferta seja mais atraente do que a da cultura audiovisual” (Sarlo, 1997, p.102).

Alienígenas? Quem? Que fazer?

Bill Green e Chris Bigum (1995), em um ensaio publicado na Austrália há dez anos atrás, declaram seu interesse e sua preocupação em pesquisar a emergência de um sujeito-estudante pós-moderno, algo que para eles estava se tornando cada vez mais visível  “um novo tipo de estudante, com novas necessidades e novas capacidades”(p. 209). Segundo estes autores, a juventude do final do século XX é um fenômeno incrivelmente complexo, produzido “na convergência dos discursos contemporâneos sobre a juventude, sobre a cultura da mídia e sobre o pós-modernismo” (p.209). Tal condição cultural específica estaria exercendo um papel determinante não apenas na forma como a juventude é construída, mas também na forma como ela é vivida. Surpreendentemente, dizem eles, ainda não refletimos de forma suficientemente imaginativa sobre como lidar com tais estudantes na escola, e continuamos nos comportando como se essa nova juventude, e também uma nova infância, não existissem, não estivessem lá.
Diante da questão  existem alienígenas em nossas salas de aula?  Green e Bigum (1995) respondem que tudo depende de ponto de vista, já que tanto os docentes podem considerar os estudantes alienígenas, como vice-versa. Contudo, afirmam, parece que professores e professoras inclinam-se a tomar os estudantes como uma “nova estirpe de demônios”, esses “outros”, que invadem nossas aulas e seminários, olhando-nos como se fôssemos seres estranhos e fora de foco. Tais alienígenas, seres distantes que nos miram com olhos frios, que invadem nossas salas de aula aguardando impacientes nossas instruções sobre como herdar a terra, não estão de visita, eles vieram para ficar. (Green e Bigum, 1995)
Segundo os autores, não apenas professoras e professores estão temerosos e comportam-se assim; pais, mães, e a esfera pública convencional em geral tendem a expressar preocupação com o suposto desvio da juventude contemporânea. Em tom apocalíptico e demonstrando um certo pânico moral, as vozes reguladoras e guardiãs da normalidade têm denunciado a invasão de um contingente cuja identidade tem sido descrita como patológica, deficiente, incompleta, inadequada. No epicentro de tais preocupações está a condenação da inclinação juvenil pela cultura da imagem e pelas “frivolidades da televisão”, pela tecnocultura vista como simplificadora e imediatista, bem como sua compulsão pela música pop, interpretada como expressão bárbara da alma. Tais interesses, manifestações evidentes da expansão e penetração da cultura popular na vida contemporânea, são tomados como ameaça aos valores literários, às verdades essenciais e permanentes, àquilo que, supostamente, integra a cultura que vale e que deveria ser ensinada e aprendida. De fato, o que sustenta tais alegações é a noção de que a opção pelas manifestações contemporâneas da cultura representariam um declínio, a derrocada da racionalidade e a vitória das forças das trevas sobre as da luz.
Na visão de Green e Bigum (1995), precisaríamos enfatizar e investigar as implicações dessa mudança cultural e epistemológica para a pedagogia, buscando compreender melhor as relações entre tecnologias e pedagogias, escolarização e cultura da mídia.

Apenas agora estamos começando a registrar a importância educacional e cultural da imagem como um novo princípio organizacional para as relações sociais e as subjetividades. Considerados em conjunto com a informação, esses princípios emergentes contribuem para moldar formas cambiantes de currículo e alfabetismo, novas relações entre textualidade e subjetividade e novas efetivações da racionalidade e da cognição.(p.221)

Enquanto Green e Bigum (1995) ocupam-se com a repercussão das culturas juvenis na escolarização do mundo pós-moderno, um outro conjunto instigante de estudos focaliza as identidades infantis (Steinberg, 2001; Giroux, 2001; Hilty, 2001; Kincheloe, 2001; Nelson e Steinberg, 2001). Aqui, é oportuno invocar a peça publicitária de televisão, veiculada em 2003, na qual nos encantamos com um garotinho sabichão, sonolento e vestindo pijama que, do alto de uma escada, após instruir exaustivamente seus pais na realização de operações no computador e na internet, perguntava-lhes como tinham sobrevivido antes de seu nascimento. Seguindo esta vertente cultural que investe em narrativas sobre crianças sabidas, hábeis, sensíveis e inteligentes, as propagandas e novelas televisivas brasileiras têm sido pródigas na construção de personagens infantis desse tipo. Na novela O Clone ficamos seduzidos pela esperta e envolvente Kadija; em Kubanacan, por Gabriel; na atual Da cor do pecado, dois garotos sensatos e equilibrados  Raí e Otávio  dão lições de maturidade a suas mães, provavelmente inspirados em outro garoto-adulto  o Zeca , que emocionou a audiência da novela Celebridades, ao compreender as mancadas existenciais de um pai alcoólatra, a quem apoiava e incentivava incondicionalmente para abandonar o vício . Estudos sobre a invenção desta criança sabida e auto-suficiente no seio da cultura popular contemporânea têm sido realizados por Kincheloe (2001) que nos alerta para a facilidade com que ao mesmo tempo em que tais identidades são cultivadas em produções fílmicas e televisivas, uma outra movimentação no seio da cultura expõe-nas como ameaçadoras tanto para os adultos como para a ordem social. Crianças com poder, precoces demais, que aprendem fora da ordem estabelecida por certas instituições ou pelas mídias socialmente sancionadas, são consideradas perigosas, assim como o são jovens questionadores e independentes, que subvertem regras e não respeitam cânones. Segundo o autor, há hoje uma onda de demonização da infância e da juventude, cujo objetivo seria contrabalançar a “enorme identificação com a precocidade, a independência e o sucesso da caracterização do Kevin de Macaulay Culkin em Esqueceram de mim.” (Kincheloe, 2001, p. 37). Entre nós isto não tem sido diferente. Enquanto, por um lado, proliferam as representações de crianças e jovens integrados na condição pós-moderna, familiarizados com a cibercultura, com mundos e relacionamentos virtuais, imersos criativamente em novas culturas juvenis, adaptados às formas e composições contemporâneas de “vida familiar”, por outro despontam os bem-sucedidos manuais para pais e professores, bestsellers que celebram a retomada da disciplina, da hierarquia familiar, da definição de limites, das fórmulas domésticas e escolares de vigilância sobre a vida cotidiana de crianças e jovens que estariam fora de controle. Enquanto a mídia impressa e falada têm se dedicado a documentar fartamente as transgressões de crianças e jovens violentos e desregrados, tanto no ambiente escolar e familiar como no espaço público, a literatura de auto-ajuda tem sido pródiga na produção de título e mais títulos, expressão de uma emergente expertise dirigida a este domínio das subjetividades.
Suponho que a estas alturas de minhas considerações, muitos estarão discordando ou, pelo menos, pensando que exagero nos contornos e matizes dessas infâncias e juventudes da transposição do milênio que chegam às nossas escolas. As imagens que apresento a seguir, estão organizadas em três conjuntos e me ajudam a compor este quadro das identidades que procurei esboçar . O primeiro e o segundo é composto por fotos feitas com uma câmera digital, o terceiro é uma coletânea de propagandas de TV.

Conjunto 1
Seqüência de fotos feitas em uma escola da rede municipal de ensino de Porto Alegre. As fotos mostram as crianças e algumas das mercadorias que mencionei ao longo do texto: camisetas, pastas, mochilas, cadernos, chinelos, sapatos, tênis, saias, prendedores de cabelo, tesouras, estojos, toalhinhas, tazzos, bey-blades, cards, caixas de lápis, borrachas, canetas e outros utensílios escolares. Tudo isto está fartamente ilustrado com personagens de desenhos animados, séries de TV, filmes, super-heróis, cantores e cantoras, bandas, propagandas, etc., etc. É o próprio espetáculo pós-moderno protagonizado pela cultura visual midiática invadindo a escola.

Conjunto 2
Apresenta as produções do movimento hip-hop dentro da escola. As imagens mostram, além de cartazes coloridos, decorações em paredes, escadarias, portas, muros. Aparecem também desenhos em capas e páginas de cadernos e arquivos. Pinturas bem-humoradas decoram as portas dos banheiros masculinos. Para contrabalançar, durante as férias, a escola decorou as portas dos banheiros femininos. Observe-se a inspiração generificada que gerou polêmica: as pinturas, neste caso, tinham como tema flores, fitas, topes, bolinhas, etc.

Conjunto 3
Propagandas de Tv. É o “olho” e a narrativa da televisão, inventando histórias que fabricam identidades da infância. É a TV acionando as forças mobilizadoras da infância para induzir as pessoas ao consumo de todo o tipo de produtos.

Finalmente, o que considero ainda relevante destacar em um texto como este, que pretende contemplar uma das perspectivas da conexão entre identidade e currículo, é a forma como as identidades se reconfiguram face à perda de um cenário que se manteve estável por longos anos. Como já procurei argumentar antes, vivemos em um tempo em que novos desenvolvimentos tecnológicos e culturais, muito especialmente a mídia, a computação e a internet, tornaram-se organizadores privilegiados da ação e do significado na vida dos humanos. Esta fantástica mudança desestruturou as instituições consagradas, subverteu práticas centenárias, e instalou em seu lugar a incerteza, a provisoriedade e a imprevisibilidade. Não penso que isto seja indiscutivelmente ruim, mas entendo que a mudança é radical, que as conseqüências são sérias e exigem investimentos na busca de um novo modo de ser e de fazer escola. Não poderíamos vencer uma competição contra as pedagogias da mídia, tampouco deveríamos fugir amedrontados de nossos alunos e alunas, bem como seria inépcia desqualificar e desperdiçar suas habilidades e capacidades para viver num mundo que, concordemos ou não, parece que está se tornando cada vez mais pós-moderno. Por isso, penso que há muitas coisas que se pode fazer dentro de uma perspectiva cultural que acolhe a mudança e a diversidade e não abdica da igualdade. Há que se levar a sério o alerta de Sarlo. (1997)

Se as políticas culturais ficarem sob a responsabilidade do mercado capitalista, os processos de hibridização entre velhas tradições, experiências cotidianas, novos saberes cada vez mais complexos e produtos audiovisuais terão no mercado seu verdadeiro ministério do planejamento. Nesse mercado simbólico, todas as desigualdades ficam mais acentuadas: a desigualdade no acesso à instituição escolar, as desigualdades nas possibilidades de escolha dentro da oferta audiovisual, as desigualdades de formação cultural original. Os setores populares não dispõesm de nenhum recurso todo-poderoso para compensar aquilo que uma escola em crise não lhes pode oferecer (...).(p. 120)


Referências bibliográficas

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Texto em fase de publicação
Referência
COSTA, Marisa Vorraber. Quem são, que querem, que fazer com eles? Eis que chegam às nossas escolas as crianças e jovens do século XXI. In: MOREIRA, Antonio Flávio; GARCIA, Regina Leite; ALVES, Maria Palmira (Orgs.). Currículo: pensar, sentir e diferir (v. II). Rio de Janeiro: DP&A, 2005. (no prelo).