PROJETO CER: COMUNIDADE ESCOLAR DE ESTUDO,
terça-feira, 19 de janeiro de 2010 by Reciclagem de Artigos in

Este trabalho tem como objetivo descobrir meios, dentro da complexidade da escola, para conseguir, com o uso de novas tecnologias e com a parceria entre escolas, melhorar as oportunidades e a qualidade da interação entre professores, despertando hábitos de estudo, trabalho pedagógico e reflexão, individualmente e no coletivo. Foi feita uma parceria com três escolas públicas, de ensino fundamental e médio e o trabalho com essas escolas durou dois anos e meio, e envolveu mais de 2000 mensagens entre educadores, pela internet. A pesquisa procura mostrar os principais acontecimentos que caracterizaram a ação e as mudanças, e estudar as estruturas e estratégias que favoreceram, e as que se contrapuseram à existência e o bom funcionamento dessa Comunidade de Estudo, trabalho pedagógico e Reflexão (CER). Pelas entrevistas e observações iniciais pode-se perceber que, cada professor pouco sabia sobre a aula dos outros, e os gestores também não as conheciam bem, apesar da convivência diária e do clima de amizade. Usando internet (mensagens em grupo), reuniões com presença real, e conversas por telefone, desenvolveram-se comunicações e trocas entre os professores, gestores e pesquisador, por meio das quais era possível refletir sobre a prática pedagógica que realizavam. Conseguiu-se que os horários pedagógicos fossem ampliados e mais bem aproveitados. Além dos horários internos, passaram a existir momentos de encontro entre educadores das três escolas. Os professores aprovaram as novas possibilidades de planejamento e reflexão em conjunto, e passaram a trabalhar com mais compromisso e entusiasmo. Apesar das difíceis condições que se têm nas escolas, as estratégias propostas e experimentadas ajudam na construção de uma escola mais cidadã, onde professores (e toda a comunidade escolar) possam se sentir melhor como pessoas, convivendo e desenvolvendo seus potenciais humanos, no lugar de executarem papéis pré-estabelecidos.

Palavras-chave: formação em serviço; educação semi-presencial; gestão democrática da escola; espiral da aprendizagem; planejamento participativo; comunidade de estudo


Tudo começou com uma coisa que me incomodava. Não era uma coisa que acontecia só na escola. E também não era um problema destes nossos dias. Os meios de comunicação já ecoavam o mesmo incômodo. Há mais de 20 anos, Chico Buarque falava da Roda Viva, e da gente que quer, mas não consegue, ter “voz ativa” e mandar em seu destino. Mesmo entre os jovens de hoje, existe eco para essa expressão e esse sentimento de que em nossa vida falta reflexão e conscientização para redirecionar nossa ação. O conjunto de rock Tianastácia diz:
Tudo fora de controle
E o controle da TV me controlando
E eu que então pensava que me controlava
’tava ali, descontrolando

Tudo fora de controle e
O ponteiro do relógio te marcando
Se quiser não mude
A falta de atitude seguirá te acompanhando

E se parasse um pouco não perderia nada
E ajudaria a cabeça sempre alienada
Cabeça vazia cheia de informação
De noite e de dia é oficina do diabo então.
Dessa maneira eu percebia a situação da escola. Por ‘falta de tempo’ para parar e discutir as situações, o coletivo não avançava na resolução dos problemas, e as pessoas começavam a sentir-se mal. E se parassem um pouco, refletiriam mais e poderiam aproveitar melhor as energias e potenciais existentes. As pessoas sentiam-se incomodadas mas sem saber bem como mudar a situação. Por outro lado, sentia que o ser humano é um ser histórico e que fica feliz ao conseguir desenvolver seu potencial.
Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu "destino" não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro (Freire, 1996, p. 58).

Figura 1 - ‘Espiral da Aprendizagem’
Diante da complexidade da escola, com tantos papéis, espaços e situações, e buscando evitar que a roda-viva determinasse seu destino, a base teórica adotada para esta intervenção e pesquisa foi a ‘Espiral da Aprendizagem’ (Valente, 2002a). Ver figura 1.
A idéia aparece como ‘Ciclo da prática pedagógica’ em Prado&Valente (2002) e idéias semelhantes são chamadas de ‘racionalidade prática’ por Gómez (1995), ou por ‘reflexão sobre a ação’ (Schön, 1995), ou ‘orientação sócio-reconstrutivista’ (Garcia, 1999), ou construcionismo (Papert 1985, 1994; Valente 1993, 1999b; Freire&Prado, 1999; Almeida 2000). Todos falam do “movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer” (Freire, 1996, p. 43). Em situações de opressão e de falta de liberdade, Freire propõe ação e reflexão, numa educação problematizadora como prática da liberdade.
[...] nem um diletante jogo de palavras vazias – quebra-cabeça intelectual – que, por não ser reflexão verdadeira, não conduz à ação, nem ação pela ação. Mas ambas, ação e reflexão, como unidade que não deve ser dicotomizada. (Freire, 1987, p. 53)
É uma maneira de se entrelaçar teoria e prática: desenvolver teorias partindo das vivências das pessoas (prática), e interferir no cotidiano, partindo de análises e recomendações acadêmicas (teoria). Assim foi feito um projeto buscando que a escola tivesse ATITUDE, e que conseguisse PARAR quando visse que era preciso. O que estava em jogo era a posição das pessoas como sujeitos e não objetos do sistema escolar. Alunos, professores, gestores, funcionários, familiares e comunidade, enfim, todos, precisavam encontrar meios para agirem como sujeitos, e com isso se sentirem realizados como gente que são.
Ao elaborar o Projeto CER, procurava-se a reflexão e mudanças na escola como um todo. Não serviriam mais experiências que girassem em torno de ilhas de excelência, como visto em outros trabalhos. O foco foi colocado na formação de professores, e na educação continuada ou na ‘formação em serviço’. Professores especialistas, ou disciplinares (5a a 8a série e Ensino Médio). Desejava-se trabalhar com a escola pública, e com as condições de trabalho existentes na realidade. Escolas em condições normais. Não se desejava trabalhar com escolas que contassem com condições especiais.

Assim buscou-se formar a Comunidade escolar de Estudo, trabalho pedagógico e Reflexão teórico-prática (CER). O trabalho envolveu cinco escolas estaduais em São José dos Campos, São Paulo, das quais, três participaram efetivamente da parceria. Encontramos uma escola em que as pessoas tinham amizade, mas pouco sabiam sobre a prática pedagógica dos colegas. Num primeiro momento buscamos tirar os professores desse isolamento, criando oportunidades e circunstâncias em que cada um mostrasse como desenvolvia suas aulas, e de forma tal que uns parassem para ouvir os outros. Acreditávamos que a partir do diálogo, aconteceria a reflexão e a reconstrução da prática, bem como possibilidades maiores de articulação entre teoria e prática.
A ação do projeto CER foi constituída dos quatro elementos básicos mostrados na figura 2 (1) ‘grupos via internet’, (2) parceria entre escolas, (3) ‘espiral da aprendizagem’ e (4) relações democráticas de poder.

Figura 2 – Bases do projeto CER
No princípio eu imaginava que o grande diferencial das pesquisas do projeto CER fosse o diálogo pela internet, com trocas de mensagens escritas. Isso aconteceu e foi importante, além de ser uma novidade no diálogo entre professores. Mas o que considero que tenha sido o mais importante, aconteceu nas interações presenciais. Os tempos que as escolas participantes dedicaram à ‘formação em serviço’ de professores em 2003 foi quase o dobro do que aquele que acontecia anteriormente. Ou seja: foram abertas novas oportunidades para que o professor estudasse, desenvolvesse seus trabalhos pedagógicos, e refletisse em comunidade, tanto no plano presencial como via internet.
Não foi possível computar o tempo dedicado à escrita e leitura de mensagens para as trocas via internet, porque essas atividades acabaram acontecendo, quase que exclusivamente, fora do ambiente e horário escolar: em casa. Mas no total, foram escritas quase 2000 mensagens nesses mais de dois anos abrangidos pela pesquisa. Mesmo sabendo que muitos não acompanhavam esse diálogo a distância, e que outros, quase só liam e pouco escreviam, essas interações tiveram um peso importante, na reflexão e ação conjunta. Imagine-se: quanto tempo foi voluntariamente dedicado a isso? Costurando interações a distância e presenciais, num esforço conjunto, pesquisador, ‘equipes gestoras’, e professores, conseguiram mudar muita coisa nas três escolas. O professor passou a:
• estudar mais, e estudar em conjunto com os colegas de escola;
• elaborar mais, as suas propostas para a aula;
• apresentar mais, o que fazia aos colegas;
• conhecer melhor o que seus colegas faziam;
• e alguns até desenvolveram trabalhos em conjunto.
Todos – professores e gestores – passaram a usar mais comumente a ‘espiral da aprendizagem’, avaliando conjuntamente o que faziam, criando e apresentando mais registros do que de costume, com mais interação entre pares, tanto no planejamento como na avaliação/reflexão. Tivemos mais interação entre educadores, até no acompanhamento, durante a ação pedagógica.
Grosso modo, pode-se dizer que foi construída uma parceria entre três escolas públicas. Essa experiência foi coordenada por este pesquisador, mas construída com a ajuda de todos, principalmente com as ‘equipes gestoras’ das três escolas. Construímos uma parceria apoiada:
• nas trocas de mensagens via internet;
• nos Encontros de professores;
• em ações com alunos, planejadas, acompanhadas e avaliadas conjuntamente;
• na ampliação das oportunidades de interação entre professores;
• em estudos de teorias relacionadas a desafios práticos do contexto;
• e na busca de relações democráticas de poder, procurando unidade e respeitando diversidade.
Mesmo dentro das carências, complexidade e dificuldades em que vive a escola pública, pode-se perceber que a liderança democrática, o uso criativo das novas tecnologias e a espiral da aprendizagem podem melhorar muita coisa rumo à escola cidadã.

Conclusões
[01] Lutar sempre, com bom humor e esperança. A questão do tempo é um problema educativo.
[02] Costura da três vias (presencial, internet e telefone) é fundamental. Existe ainda um potencial maior a ser explorado.
[03] O que interessa é a rede humana, que pode ser começada por qualquer nó.
[04] Os papéis formalmente instituídos não precisam ser rigidamente exigidos. As pessoas se alternam nos papéis. Até o papel do diretor pode ser exercido por outra liderança.
[05] Liderança maior é fundamental para a sinergia coletiva.
[06] A equipe gestora também precisa participar de uma comunidade sua.
[07] O educador é liderança. Monta e coordena ambientes de aprendizagem cuidando da interação entre educandos e desenvolvendo novas lideranças. É natural que aconteçam tensões entre idéias e pessoas no diálogo pedagógico entre professores. As tensões e problemas podem ser vistos como oportunidades educativas.
[08] O diálogo coletivo requer confiança e segurança.
[09] Algumas pessoas se abrem e se colocam melhor nas relações virtuais.
[10] Para resolver as situações-problema, deve-se começar explicitando o conflito no coletivo.
[11] Os professores querem, gostam das trocas e do trabalho conjunto.
[12] A melhoria da organização do coletivo, para as interações (democráticas, solidárias e com alteridade), faz aumentar o compromisso de cada professor com a escola.
[13] Alguém precisa assumir o papel que este pesquisador teve no projeto CER, provocando a parceria entre escolas, as apresentações, os planejamentos conjuntos, os estudos e a reflexão, inclusive organizando os relacionamentos entre as ‘equipes gestoras’ das escolas, levantando-lhes a auto-estima em alguns momentos, questionando-lhes a atitude em outros, e enfim, assumindo a postura do educador no grupo (libertador e não “bancário”).
[14] É preciso equilíbrio na convivência com opostos:
base 1 - Novas Tecnologias Eletrônicas
• Usar sem se subordinar a elas.
• Liberdade para usar e não usar.
• Não desvalorizar contatos presenciais.
• Não isolar presencial do ‘via internet’.
• Para formação em serviço e para aula.
• “Estar junto” virtual e presencial.
Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de outro. Por isso mesmo, sempre estive em paz para lidar com ela. Não tenho dúvida nenhuma do enorme potencial de estímulo e desafios à curiosidade que a tecnologia põe a serviço das crianças e adolescentes das classes sociais chamadas favorecidas. Não foi por outra razão que, enquanto secretário de educação da cidade de São Paulo, fiz chegar à rede das escolas municipais o computador. Ninguém melhor do que meus netos e minhas netas para me falar de sua curiosidade instigada pelos computadores com os quais convivem. (Freire, 1996 p. 97 e 98)
base 2 - Parceria entre Escolas
• Participar do global sem perder o particular.
• Respeito à identidade de cada escola
• Respeito às diferenças – gestores, professores, alunos.
• Abertura para o diferente.
• Abertura para se mostrar.
• Registros / Análise.

base 3 - Espiral da Aprendizagem
• Continuidade / conjunto.
• Melhor aproveitamento das oportunidades.
• Programação dinâmica e democrática.
• Não subordinação ao tempo.
• Ligação teoria e prática

base 4 - Relações Democráticas
• Articulação de lideranças.
• Unidade do coletivo.
• Participação de lideranças de todos os segmentos.

Para finalizar, apresento outra arte atual, que também fala de pessoas que vão se descuidando e acabam virando peças do sistema.
Pane no sistema alguém me desconfigurou
Aonde estão meus olhos de robô?
Eu não sabia, eu não tinha percebido
Eu sempre achei que era vivo
Parafuso e fluído em lugar de articulação
Até achava que aqui batia um coração
Nada é orgânico é tudo programado
E eu achando que tinha me libertado
Mais lá vem eles novamente e eu sei o que vou fazer: Reinstalar o sistema.
Pense, fale, compre, beba, leia, vote não se esqueça
Use, seja, ouça, diga, tenha, more, gaste e viva
Não sinhô, Sim sinhô, Não sinhô, Sim sinhô (Pitty).
Também na escola, ao tomarmos a história em nossas mãos, somente ao assumirmos nosso presente e nosso destino, seremos humanos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Almeida, Maria Elizabeth B. (2000). O computador na escola: contextualizando a formação de professores praticar a teoria, refletir a prática. Doutorado em educação: currículo. São Paulo, PUC-SP.
Freire, Fernanda M. P. & Prado, Maria Elizabette B. (1999). Projeto Pedagógico: Pano de Fundo para a Escolha de um Software Educacional. In: J. A. Valente (org.) O computador na sociedade do conhecimento. Campinas, SP: NIED - UNICAMP, p. 111-129.
Freire, Paulo (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. (7a edição).
Freire, Paulo (1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. (a primeira edição é de 1970 e foi consultada uma cópia da 21a edição).
Garcia, Carlos Marcelo (1999). Formação de Professores para uma Mudança Educativa. Porto: Porto Ed.
Gómez, Angel P. (1995). O pensamento prático do professor. In: Nóvoa, A. (coord.) Os professores e a sua Formação. Lisboa: Dom Quixote.
Papert, Seymour (1994). A máquina das Crianças: Repensando a Escola na Era da Informática. Porto Alegre: Artes Médicas.
Papert, Seymour (1985). Logo Computadores e Educação. São Paulo: Brasiliense.
Prado, Maria Elizabette B. B. & Valente, José Armando (2002). A Educação a Distância Possibilitando a Formação do Professor. In: Moraes, M. C. (org.). Educação a Distância, Fundamentos e Práticas. Campinas, SP: UNICAMP/NIED, p.27 a 50.
Schön, Donald A. (1995). Formar professores como profissionais reflexivos. In: Nóvoa, A. (coord.) Os professores e a sua Formação. Lisboa: Dom Quixote.
Valente, José Armando (2002a). A ‘espiral da aprendizagem’ e as tecnologias da informação e comunicação: repensando conceitos. In: JOLY, M. C. (Ed.). A tecnologia no ensino: implicações para a aprendizagem. São Paulo: Casa do Psicólogo Editora, p. 15 a 37.
Valente, José Armando (1999b). Mudanças na Sociedade, Mudanças na Educação, o Fazer e o Compreender. In: J. A. Valente (org.) O computador na sociedade do conhecimento. Campinas, SP: NIED - UNICAMP, p. 29-48. Disponível em (Biblioteca Virtual / Publicações).
Valente, José Armando (1993). Computadores e Conhecimento: repensando a educação. Campinas : UNICAMP/NIED.